Dourados – MS terça, 21 de maio de 2024
31º
Saúde pública

Ataque a múltiplos órgãos e desequilíbrio imune: estudo revela como o vírus chikungunya leva à morte

Equipe internacional que inclui virologistas, médicos, epidemiologistas, clínicos, físicos e estatísticos descobriu novos mecanismos relacionados à infecção do sistema nervoso central em casos fatais da infecção

13 Mar 2024 - 07h45Por Julia Moióli | Agência FAPESP
Criomicroscopia eletrônica do vírus chikungunya, endêmico no Brasil há mais de uma década - Crédito: NIH 3DCriomicroscopia eletrônica do vírus chikungunya, endêmico no Brasil há mais de uma década - Crédito: NIH 3D

O vírus chikungunya, transmitido por mosquitos das espécies Aedes aegypti e Aedes albopictus e responsável por mais de 900 mortes no Brasil desde que chegou ao país há cerca de dez anos, é capaz de se espalhar pelo sangue, atingir múltiplos órgãos e atravessar a barreira hematoencefálica, que protege o sistema nervoso central. Os mecanismos de ação observados pela primeira vez em casos fatais por um grupo de pesquisadores brasileiros, americanos e britânicos foram relatados em artigo publicado ontem (12/03) na revista Cell Host & Microbe . Os achados reforçam a necessidade de atualização dos protocolos de tratamento e vigilância.

Com mais de 10 milhões de casos registrados em cerca de 125 países nos últimos 20 anos, sendo 2 milhões apenas no Brasil, onde é endêmica há mais de uma década, a doença causada pelo vírus chikungunya (CHIKV) ainda é equivocadamente considerada menos mortal do que a dengue. Para ajudar a desfazer esse mito, os pesquisadores das universidades Estadual de Campinas (Unicamp), do Kentucky (Estados Unidos), de São Paulo (USP), do Texas Medical Branch (Estados Unidos) e Imperial College London (Reino Unido), além do Laboratório Central de Saúde Pública do Ceará (Lacen), realizaram a análise mais completa sobre o tema até o momento. No ano passado, o grupo já havia relatado alta letalidade do CHIKV no Ceará, Estado com o maior número de casos do país (leia mais em: agencia.fapesp.br/41078).

O estudo, financiado pela FAPESP (projetos 17/25588-117/13981-018/14389-019/00098-719/24251-9 e 19/27333-6), analisou dados relativos a 32 pacientes mortos. Foram incluídos resultados de testes para a presença de CHIKV no organismo, informações laboratoriais e de autópsia. Em amostras de soro sanguíneo, líquido cefalorraquidiano e outros tecidos (como cérebro, coração, fígado, baço e rins), foram feitos exames de histopatologia (técnica que consiste em analisar, em microscópio, o tecido fixado em parafina), quantificação de citocinas (proteínas sinalizadoras secretadas por células de defesa), metabolômica (análise do conjunto de metabólitos presente no soro), proteômica (conjunto de proteínas) e análises genômicas virais, além de reações em cadeia da polimerase por transcrição reversa em tempo real (RT-qPCR), técnica laboratorial que permite a detecção e quantificação precoce de vírus por meio de seu material genético.

Para efeitos de comparação, os cientistas avaliaram também amostras e exames de outros dois grupos, sendo um composto de 39 sobreviventes de infecção aguda por CHIKV e outro de 15 doadores de sangue (pessoas adultas sem nenhuma infecção e presumidamente saudáveis).

Invasão do sistema nervoso central

Um dos achados que mais chamaram a atenção dos pesquisadores foi a presença do CHIKV em amostras de líquido cefalorraquidiano, o que indica sua capacidade de atravessar a barreira hematoencefálica, camada física que protege o sistema nervoso central e normalmente barra a entrada de patógenos.

Segundo o artigo, essa “invasão” acontece por meio de dois mecanismos: no primeiro, o vírus infecta monócitos CD14+CD16+ (células de defesa que têm na superfície moléculas CD14 e CD16) e, na presença de altos níveis de CCL-2 (uma proteína reguladora de inflamação que faz parte do sistema imune), migra através da barreira e é transportado para o cérebro; no segundo, a infecção afeta proteínas importantes para manter unidas as células epiteliais da barreira hematoencefálica.

“Isso mostra que o CHIKV, além de ser responsável por uma artralgia [dor nas articulações], que causa febre, dor muscular e inchaço articular, também leva a danos neurológicos”, explica William Marciel de Souza, professor na University of Kentucky (Estados Unidos) e primeiro autor do estudo.

“No sangue, observamos uma alteração severa na cascata de coagulação, com a diminuição de algumas proteínas-chave, bem como danos hemodinâmicos nos órgãos, ou seja, excesso de líquidos. No sistema imune, os níveis de citocinas associadas à inflamação se mostraram maiores que os observados em pacientes com chikungunya que sobreviveram.”


Resumo gráfico dos principais achados do artigo (imagem: acervo dos pesquisadores)

Saúde pública

Compreender os mecanismos biológicos de qualquer doença contribui para o desenvolvimento de tratamentos eficazes, biomarcadores prognósticos e estratégias de manejo clínico. De acordo com os pesquisadores envolvidos no trabalho, isso é fundamental no caso do chikungunya por dois motivos:

“Ainda não existem programas de imunização em grande escala – a primeira vacina contra o vírus foi aprovada pela Food and Drug Administration [órgão norte-americano de vigilância sanitária] em novembro do ano passado – e os surtos devem continuar seguindo o mesmo padrão no Brasil, ou seja, afetando muitas pessoas de uma vez, porém, em pequenos bolsões geográficos”, avalia José Luiz Proença Módena, professor do Instituto de Biologia da Unicamp. “As equipes de saúde pública precisam estar preparadas para isso, inclusive com vigilância genômica, sorológica e em porta de UTI [unidade de terapia intensiva].”

“Além disso, quadros de insuficiência cardíaca e neurológicos não são tradicionalmente associados à doença, mas, em uma fração da população acometida por esse vírus, isso pode ocorrer e deixar sequelas ou até mesmo levar à morte”, completa Souza.

A pesquisa também recebeu apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Fundação Bill & Melinda Gates, do Global Virus Network, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), National Institutes of Health (NIH), Burroughs Wellcome Fund e Wellcome Trust.

O artigo Pathophysiology of chikungunya virus infection associated with fatal outcomes pode ser lido em: www.cell.com/cell-host-microbe/fulltext/S1931-3128(24)00054-4.
 

Deixe seu Comentário

Leia Também

Brasil ultrapassa 5 milhões de casos prováveis de dengue
Saúde

Brasil ultrapassa 5 milhões de casos prováveis de dengue

21/05/2024 13:00
Brasil ultrapassa 5 milhões de casos prováveis de dengue
Oficina de sensibilização à perda gestacional e neonatal é promovida no HU-UFGD
Saúde

Oficina de sensibilização à perda gestacional e neonatal é promovida no HU-UFGD

21/05/2024 09:30
Oficina de sensibilização à perda gestacional e neonatal é promovida no HU-UFGD
Comissão debate riscos associados ao consumo de cigarros eletrônicos
Câmara dos Deputados

Comissão debate riscos associados ao consumo de cigarros eletrônicos

21/05/2024 06:30
Comissão debate riscos associados ao consumo de cigarros eletrônicos
Com apoio do Governo de MS, AACC entrega reforma do centro de tratamento de oncologia infantil no HR
Saúde

Com apoio do Governo de MS, AACC entrega reforma do centro de tratamento de oncologia infantil no HR

20/05/2024 22:15
Com apoio do Governo de MS, AACC entrega reforma do centro de tratamento de oncologia infantil no HR
Secretaria de Saúde estende primeira dose da vacina contra dengue até 31 de julho
Dourados

Secretaria de Saúde estende primeira dose da vacina contra dengue até 31 de julho

20/05/2024 17:00
Secretaria de Saúde estende primeira dose da vacina contra dengue até 31 de julho
Últimas Notícias