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De mulheres e literatura

07 Mar 2021 - 09h00Por Ana Arguelho*
Ana Arguelho - Ana Arguelho -

Vamos comemorar o Dia da Mulher! Sei que ele foi inventado para aquecer o mercado, estimulando o verbo comprar. Por que um dia só nosso? Afinal, todo dia é dia da mulher. Para muitas mulheres, todo dia é dia apanhar do marido, de receber xingamento dos filhos, discriminação do patrão, de ser assediada, violentada, estuprada, vilipendiada e, por fim, morta, a bala, a facada, estrangulada. Para as mais afortunadas, todo dia é dia de cuidar dos filhos, administrar ou faxinar a casa, amar o marido, enfrentar a disputa do mercado para segurar o bom ou o parco emprego, etc... etc... etc... Sinto muito começar dessa forma uma crônica sobre o dia mulher. Assim o faço, porque todo dia é dia de denunciar, de pôr a boca no trombone e de gritar aos quatro ventos as nossas verdades. Porque nós mulheres somos teimosas. E apesar ou mesmo por causa disso tudo, vamos festejar o “Dia da Mulher”. Somos feitas de aço e de mel. Nascemos sagradas, ungidas, predestinadas a fazer do mundo um lugar melhor para se viver. 

Já fomos sacerdotisas: Sou sacerdotisa / De Ísis (...) Já fomos servas. Sou tua serva, capturada na guerra (Raquel Naveira, em Senhora). Já lutamos contra a ditadura: Eu saía pelas cidades de ônibus e, em cada parada, deixava panfletos que abominavam a ditadura militar. Se eu passei medo?  Sim, muitas vezes... (Elza Fonseca em O Livro de Elza). Somos da luta, dos enfrentamentos que exigem força, coragem, retidão de espírito: a vida é luta. Dias que subtraem  (...) parindo solidão por dentro e por fora (...) (Ana Bernardelli em Na Trilha das Formigas). Mas... Há dias que a espera é desesperança, hemorragia / A vida joga a criança junto com a água da bacia / há dias que dói fazer poesia (Raquel Anderson, versos esparsos). E, por fim, Quando nos tornamos aptos / a receber emanações / onde o movimento / não perturba a consciência / se instala em nós o Estado de Paz (Delanieve Daspet em Mutações) 

Raquel Naveira capitaneia essa nave não só com seus poemas, crônicas, contos, histórias infantis, em trinta e oito livros escritos, mas com uma história de labor contínuo e duro para sua poesia voar e pôr abaixo as durezas da vida. Uma escritora delicada e sutil, armada de palavras e intertextos que nos remetem sempre à história humana, nas suas grandezas infindas e em seu cotidiano prosaico. Quase que se torna dispensável apresentá-la ao público. Ela é, sem dúvida, a grande dama da literatura do Mato Grosso do Sul, com visibilidade nacional e internacional. 

A seguir, Raquel Anderson, nossa doce e afetiva poeta que traz forte na sua poesia as verdadeiras raízes da nossa alma pantaneira. Raquel nasceu no Pantanal, ungida com a força das rimas e das imagens. A rima brota fácil em seus poemas e a cadência musical das imagens faz a gente dançar por dentro. Poeta pura, poeta grande, que sabe cantar a singularidade da nossa terra sem banalizar, só caminhando, em uma poética de profunda densidade. Seu coração é doação pura. E isso transborda nos seus versos. Que riqueza ter uma escritora desse quilate em nosso meio. 

Depois chega Ana Bernardelli, surpreendente em sua magia e delicadeza poética. Escritora sensível às exigências da poética, seus versos inspiram voos, suscitam utopias e trazem à tona emoções e reflexões profundas. Chegou ao universo da literatura com a força de um vulcão em erupção, como alguém que se guardou, cuidadosamente, para o grande momento. Seus versos perfeitos obedecem com rigor a desobediência própria da poesia. Com Ana e sua natural vocação para o manejo da palavra, a certeza de que a poesia terá vida longa. 

 

A literatura memorialística é uma das nossas maiores riquezas. Ela nos chega com força e graça nas narrativas de Elza Fonseca, dotada de um poder descomunal para contar histórias. É uma escritora da resistência e um orgulho para nós deste Estado poder contar com sua palavra nos relatos dolorosos vividos por ela e sua família durante a repressão militar no Brasil. Memórias que Elza enlaça com humor e alegria nos fatos do cotidiano, tornando a leitura da obra fascinante e a gente experimentando um misto de dor e carinho que aguça sem dúvida a nossa consciência crítica. 

Finalmente fecho essa preciosa galeria com a poeta Delasnieve Daspet, criadora e presidente da AFLAMS (Academia Feminina de Literatura e Artes de Mato Grosso do Sul). Uma voz forte na poesia, Delasnieve nos traz o eco da grande literatura latina, quer seja no tom declamatório que imprime ao texto, quer na largueza dos versos quando canta a grande aventura humana em mutação. Seus escritos, carregados de humanidade revelam uma poeta sensível e doce por detrás da mulher forte que foi responsável por termos mais uma Academia de Letras em nosso Estado.

Trago a público, estas mulheres escritoras, do nosso Estado Pantaneiro do Mato Grosso do Sul, todas com a palavra muito forte, esperando que as leitoras de O Progresso, neste seu dia, as recebam, como se fora um lindo ramalhete de flores que nos estimule, potencialize nossas lutas e nos dê visibilidade.

*Doutora em Literatura pela UNESP/Assis – SP - Membro da AFLAMS

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