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Obesidade: interesses econômicos se digladiam, e saúde da população continua desassistida

Paulo A. Lotufo, professor da Faculdade de Medicina e superintendente de Saúde da USP

11 Mar 2024 - 07h45Por Jornal da USP
Professor  Paulo A. Lotufo - Crédito: Marcos Santos / USP ImagensProfessor Paulo A. Lotufo - Crédito: Marcos Santos / USP Imagens

Oaumento do peso corpóreo é um fato inegável que se observa em todas as sociedades. A causa do aumento da prevalência da obesidade é apresentada ora como um problema do indivíduo, que pode ter soluções que vão desde a psicanálise até a cirurgia bariátrica, ou como problema da sociedade, daí a “sociedade obesogênica”. Os epidemiologistas cunharam esse termo porque, no Brasil, o aumento de sobrepeso em 50 anos foi de 22% (1974) para 62% (2023) na população adulta, o que somente se explica por alterações sociais e econômicas na sociedade brasileira. No entanto, nos últimos anos houve um fato marcante: o lançamento da samaglutidina, nome comercial, Ozempic, com custo mensal de R$ 1.200. As vendas foram de tal monta que elevaram substancialmente o produto interno bruto da Dinamarca, onde está sediado o laboratório detentor da patente, a Novo Nordisk.

O Ozempic foi inicialmente lançado para controle do diabetes, depois para redução de peso e, recentemente, ensaio clínico mostrou que a samaglutidina reduz a doença cardíaca em obesos sem diabetes. O uso do Ozempic se ampliou em todo o mundo com indicações off-label, principalmente depois de reportagem do New York Times, reproduzida na Folha de S. Paulo, na qual se descreve que a samaglutidina poderá ter outras ações positivas, como atuar no controle e manejo de alcoolismo, doença cardíaca, síndrome dos ovários policísticos, doenças renais e hepáticas e apneia do sono. Se tudo o que é prometido for verdade, Ozempic seria uma solução tão marcante quanto os antibióticos foram de fato para as doenças bacterianas.

O fenômeno Ozempic iniciou todo tipo de reações. O colunista de gastronomia da Folha de S. Paulo, por exemplo, afirmou que “condena-se o Ozempic e seus sucedâneos por oferecerem um atalho que dispensa a reeducação alimentar e o engajamento na prática de atividades físicas”. Imediatamente, esse colunista foi contestado por médicos, nutricionistas, professores de educação física que atuam no atendimento ao sobrepeso com dietas e exercícios e que consideram essas intervenções fundamentais para o controle da obesidade. Os dois lados acertam, porque tanto o Ozempic como as intervenções dietéticas e de exercícios são opções válidas na perspectiva individual, mas pouco ou nada representam no contexto social.

Voltamos então ao motivo por que epidemiologistas interpretam que o aumento em três vezes do sobrepeso no Brasil em cinquenta anos tem base social e econômica. Essa “sociedade obesogênica” passou a ser decifrada em uma sequência de estudos brasileiros originados no Núcleo de Pesquisas Epidemiológicas em Nutrição e Saúde da USP, que identificou os alimentos ultraprocessados na gênese da obesidade. A relação dos alimentos ultraprocessados com desfechos adversos à saúde humana tem sido comprovada em vários estudos epidemiológicos, incluindo na população brasileira, como no Estudo Longitudinal de Saúde do Brasil (Elsa-Brasil). A consequência prática desse conhecimento surgido no Brasil conduziu à classificação diferente de alimentos denominada NOVA, que se desdobrou há dez anos no Guia Alimentar para a População Brasileira, que é referência mundial.

A proposta NOVA e o Guia Alimentar, frise-se que ambos originados na USP, sofreram ataques pesados na gestão passada do governo federal, que tentou transferir as orientações dietéticas do Ministério da Saúde para o Ministério da Agricultura. Um golpe sem sucesso, mas os ataques à proposta consagrada no Guia Alimentar são anteriores e bem organizados pelos conglomerados da indústria alimentícia em todo os mundo.

No terreno científico, um editorial na revista American Journal of Clinical Nutrition, que atacou ferozmente a classificação NOVA, foi escrito por dois autores que eram membros do conselho científico da Nestlé e da Cereal Partners Worldwide. Na imprensa brasileira (aquele setor com o complexo rodrigueano de vira-lata), em 2009, uma estrela do colunismo econômico afirmou que “(…) esses alimentos industrializados que ficaram mais baratos são mais gostosos e mais calóricos. Um trabalhador come uma salada e é como se tivesse tomado um copo de água. Um baita hambúrguer sai mais barato e alimenta mais”. Para finalizar, o jornalista, que se arvora em classificar outros como estúpidos, avança contra os que na época iniciavam o Guia Alimentar com duas frases: “(…) sim, o pessoal engordou, mas não se deve tirar daí a conclusão estúpida de que se deve dificultar a vida dos produtores desses alimentos. E muita gente, inclusive no atual governo, se dedica a isso: atrapalhar o agronegócio”.

Os dois exemplos acima mostram que, apesar das evidências científicas cada vez mais robustas da contribuição dos alimentos ultraprocessados para o desenvolvimento da obesidade e de sua consequência direta, o diabetes, a indústria alimentícia mantinha-se na ofensiva contra a epidemiologia, assim como os complexos industriais atacam a ciência quando convém, como no caso do cigarro e da poluição ambiental. Paradoxalmente, o surgimento do Ozempic passou a ser uma ameaça maior ao complexo agroindustrial-comercial dos ultraprocessados do que todo o conhecimento acumulado da epidemiologia e das práticas de saúde pública. Para comprovar esse embate, o relatório da empresa Ace Capital publicado em 23/2/24, no jornal Valor Econômico, mostrou todas as entranhas da luta entre gigantes econômicos.

O início da reportagem baseia-se no fato que a empresa Novo Nordisk perderá no Brasil a patente do Ozempic em 2026. Como o custo do Ozempic é de R$ 1.200 por mês, a disponibilização da samaglutidina genérica ampliará a fração da população brasileira que terá acesso ao medicamento com a seguinte sequência de afirmativas: primeiro, os genéricos serão mais baratos e acessíveis; segundo, o número de consumidores aumentará exponencialmente; terceiro, haverá impacto nos seguimentos relacionados ao emagrecimento e aos hábitos à mesa.

O relatório descreve empresas que terão queda expressiva nas vendas, como Pão de Açúcar, Carrefour, Assaí, grupo M. Dias Branco, Ambev, Burger King, McDonalds, Popeyes e redes de restaurantes como Frango Assado, Viena, KFC. Para reforçar essa previsão, outro artigo do Valor Econômico cita que nos Estados Unidos, onde 1,7% da população faz uso de Ozempic ou similares, conglomerados da indústria alimentícia como a Conagra já notam esse movimento. A Bloomberg News descreve que o gigante varejista WalMart já detectou queda na venda de alimentos ultraprocessados. Essa informação é crível porque essa rede varejista é tanto farmácia como supermercado, assim, consegue analisar as tendências de compra de todos os seus produtos.

Com isso temos, no panorama atual, a disputa de dois gigantes econômicos, as indústrias dos ultraprocessados e de medicamentos para emagrecimento, esmagando o conhecimento científico e as propostas de saúde pública. Em outros termos: é multinacional contra multinacional e a sociedade se dá mal!

A comunidade científica precisa se posicionar, assim como a sociedade civil e seus representantes.

 

 

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