Glioblastomas são tumores agressivos e muito incidentes — eles representam 15% de todos os cânceres cerebrais e estão entre os 12 tumores mais frequentes no Brasil. Caracterizam-se por uma rápida infiltração no tecido cerebral e são rotineiramente tratados com radiação ionizante — técnica mais conhecida como radioterapia, em que feixes de radiação incidem sobre o tumor do paciente, danificando o DNA das células tumorais, levando-as à instabilidade e morte.
Devido à frequente aquisição de resistência a estas terapias e à escassez de novos tratamentos, esse tumor tem um prognóstico muito ruim: apenas um em cada dez pacientes sobrevive mais de cinco anos após o diagnóstico inicial.
Com o intuito de desvendar a relação entre proteínas envolvidas no reparo de DNA e na resistência tumoral, pesquisadores do Instituto de Química (IQ) da USP realizaram um estudo com uso de modelos celulares de glioblastoma humano resistente à radioterapia. Foi utilizado o cultivo celular tradicional em uma placa (duas dimensões) e em culturas de esferóides — pequenas esferas de células (três dimensões) que se assemelham a tumores sólidos. Os resultados dos experimentos mostraram, pela primeira vez, uma interdependência entre as duas vias de proteínas – espécie de caminho molecular que elas percorrem na célula – e sua atuação conjunta na regulação do reparo de DNA lesionado pela radioterapia.
Já é sabido que uma das principais responsáveis pela radioresistência é a proteína supressora de tumor p53. Em condições normais, a p53 desempenha um papel central na resposta celular, permitindo o reparo do dano no DNA, ou a indução da morte celular (benéfica ao organismo em certas condições, como quando as células sofrem mutações). Em 50% dos pacientes portadores de glioblastoma, a p53 encontra-se alterada, o que prejudica a sua função de suprimir a proliferação e a sobrevivência dos tumores e de manter a integridade do genoma celular.
Outro conjunto de proteínas importante é o das Rho GTPases, que são responsáveis por regular a proliferação e diferenciação celular, a dinâmica do citoesqueleto de actina (responsável por manter o formato e a integridade celular, sua mobilidade e a invasividade de outros tecidos, além de transportar proteínas para diferentes regiões e organelas) e a motilidade celular. Desse modo, não é incomum encontrar essas proteínas, bem como a sinalização que elas regulam, alteradas nesses tumores, o que possibilita o desenvolvimento e a capacidade invasiva dos glioblastomas.
Proteína supressora de tumor P53 e DNA em laranja - Foto: Wikimedia Commons
Para os experimentos, os cientistas separaram as culturas de células em dois grupos — um com p53 normal (selvagem) e outro com p53 mutante — e submeteram cada um deles a interferências em diferentes proteínas integrantes da via das Rho GTPases. Os resultados dos experimentos mostraram, pela primeira vez, uma interdependência entre as duas vias, da p53 e das Rho GTPases, e sua atuação conjunta na modulação do reparo de DNA lesionado pela radioterapia.
Radioterapia - Foto: Flickr
No caso das células de glioblastoma com p53 normal e funcional, todas as interferências na via Rho reverteram — em maior ou menor grau, a depender da proteína-alvo modificada — a resistência tumoral, de modo que a radioterapia voltou a ser uma opção eficaz de tratamento para a doença. Porém, nas células de glioblastoma com p53 mutante, nenhuma das alterações realizadas na via Rho foi capaz de reverter a resistência tumoral à terapia com radiação ionizante.
Para contornar este problema, os pesquisadores utilizaram uma droga que reativa a proteína p53 mutante e restabelece muitas de suas funções normais. Quando utilizada em conjunto com os diferentes métodos de inibição da via Rho, foi possível reverter também a resistência das células tumorais com p53 mutante frente à terapia com radiação ionizante.
Segundo Yuli Magalhães, primeira autora do artigo Downregulation of the Rho GTPase pathway abrogates resistance to ionizing radiation in wild-type p53 glioblastoma by suppressing DNA repair mechanisms, a chave para explicar este mecanismo está na atuação da p53 selvagem e na regulação da dinâmica do citoesqueleto de actina. Quando a via Rho atua normalmente, ela controla o processo de polimerização dos filamentos de actina que compõem o citoesqueleto celular. Essa polimerização acontece através da ligação sequencial de pequenas moléculas de actina (os monômeros) para a formação de uma estrutura longa e resistente (o filamento). Porém, se a polimerização é comprometida e os filamentos não são formados, os monômeros são liberados no citoplasma da célula. Livres, eles são capazes de se ligar à proteína p53 selvagem, conduzindo-a ao núcleo celular — onde ela pode atuar no DNA, regulando a sinalização, o reparo do genoma e até mesmo a morte das células tumorais, especialmente após o tratamento com radiação ionizante.
Yuli Magalhães - Foto: Arquivo Pessoal
Fabio Forti - Foto: Arquivo Pessoal
Fabio Forti, docente do IQ e responsável por orientar a pesquisa, explica qual é a importância desta descoberta para a prática clínica. Embora o mecanismo revelado não seja ativo em glioblastomas com p53 mutante, que são a maioria dos casos conhecidos hoje, existem opções farmacológicas disponíveis no mercado para reativação da p53 em diferentes tipos de tumores — ou seja, medicamentos que fazem com que a proteína se comporte similarmente ao seu estado selvagem nas células cancerosas. Assim, as terapias combinadas — com uso de drogas que reativam p53 e outras que inativam a via das Rho GTPases — serão eficazes em reverter a resistência e ampliar a sensibilidade do tumor à radiação ionizante, com consequente morte celular e acelerada regressão tumoral.
Para os próximos passos da pesquisa, Yuli Magalhães conta que o foco de seu pós-doutorado será avaliar a aplicabilidade dos resultados encontrados em modelos animais, a fim de verificar a eficácia do mecanismo proposto em um modelo vivo e mais complexo. Com isso, espera-se expandir as descobertas para uma futura aplicação clínica, que possa levar a uma sobrevida maior e com mais qualidade aos pacientes acometidos pelo glioblastoma.
Mais informações: e-mail [email protected], com Yuli Magalhães; e-mail [email protected], com Fabio Forti
*Da Assessoria de Comunicação do Instituto de Química, editado por Fabiana Mariz
Estagiária sob orientação de Moisés Dorado