João Linhares* - 13 de maio de 2021
Tantos anos depois da abolição da escravatura,
O que se vislumbra?
A Lei Áurea foi profícua
Ou permaneceu na ficção?
A liberdade foi conquistada,
Entrementes, os afrodescendentes têm muito a celebrar?
Mudou-se a quadratura?
Parece que há bastante a se lamentar...
Os negros persistem na exclusão,
Marginalizados e na penumbra.
Nessa tessitura,
A igualdade obumbra,
Pois passa a ser uma caricatura.
A isonomia é uma veleidade,
Enquanto se proclama a beleza da meritocracia.
Como alcançá-la, todavia,
Se desde tenra idade,
Os negros, em sua esmagadora maioria,
Não têm a mesma oportunidade?
Meritocracia é tétrico engodo
Que perpetua a disparidade.
O futuro é de quem já detém a primazia.
Esta data nos traz à consciência
Os horrores outrora perpetrados:
Negros vergastados,
Em atos de incomensurável indecência.
Foram trazidos de terras longínquas,
Em navios putrefatos,
Onde a maioria
De pestes e doenças
Sucumbia!
E o nome de Deus nos lábios
De quem disso se nutria.
E se passavam por sábios,
Doutores,
Senhores de respeito nos palácios,
Um escárnio,
Sempre foram verazes detratores.
Este dia não nos deixa esquecer
Dos negros escravizados,
Reduzidos a objetos.
Prefeririam não nascer,
Num período tão abjeto.
No pelourinho eram açoitados,
Vistos como dejetos.
Seus dentes à força arrancados;
Seus corpos desfigurados,
Suas almas sangravam...
Porém, poucos entre os brancos se rebelavam.
Quase todos os poderosos silenciavam,
Ainda quando os mamilos dos seios pretos femininos eram queimados
E os corpos das mulheres amiúde violados.
Crianças apartadas de seus pais,
Logo cedo, se deparavam com um hediondo mundo,
Labutando sem parar nas lavouras e canaviais.
Teatro de horror imundo!
E tantos anos depois,
Houve a consolidação da identidade?
A República inaugurou um projeto de nação unida,
De verdadeira dignidade
Ou a realidade dos negros ainda é carcomida?
Esta nova era trouxe-lhes condições
E similares meios de prosperidade?
Vãs pretensões...
Tudo ficou para as calendas,
Para a inalcançável posteridade.
Que pena!
Foram escorraçados das fazendas sem direitos;
Passaram a morar em favelas;
Ignorados por quase todos.
Jogados às traças debaixo das pontes e nas vielas.
Tratados como estorvo.
O açoite do chicote foi substituído
Pela discriminação e menoscabo geral,
Pela ignomínia e falta de inclusão.
Não raras vezes,
Perduram sendo perseguidos e oprimidos.
Impõe-se uma atmosfera de escusos interesses.
Eles são assassinados nas periferias
E severamente reprimidos.
Parece inexistir qualquer empatia.
Para alguns, essa circunstância é banal,
Pois tais negros estão no contínuo olvido.
Ganham menos no mercado de trabalho;
Sofrem dichotes lorpas,
Tratados como bandidos...
São as massas
De presidiários, iletrados e de excluídos.
A Constituição e a República
São uma farsa?
Enganação e incúria.
Isso não é trapaça?
Avançam-se os preconceituosos
E suas tropas.
Interregnos tortuosos.
Infames,
Idiotas!
Militam com extremo ruído.
Fanáticos empedernidos.
Seguidores de mitos!
E há quem asseverou que negros pesam arrobas...
Medida usada para gado.
São, portanto, desprezados!
Oh, Senhor Deus dos desgraçados,
Onde está o igual,
Neste cenário tão desumano,
Epítome do racismo estrutural?
A terra em que o sangue de Zumbi dos Palmares
E de milhões de outros
Foi derramado,
Com extremo desdouro
E crueldade,
Ainda insiste em tratar os negros como renegados.
Não se atenta que sem eles seria nada.
Sem esplendor e pulcritude.
Uma patuscada.
Seria cinza, sem a formosa negritude.
Uma modorra,
Uma severa incompletude.
Tantos anos depois,
Cumpre-nos louvar alguns de seus gênios.
Eternos, valentes,
Uns reclusos, outros boêmios.
Repleto de ideais perenes
Perseguindo quimeras reais e patentes.
Homens e mulheres que, de modo invulgar,
Romperam a barreira da impossibilidade
E demonstraram que é viável avançar,
Mesmo na árdua adversidade.
Em cada momento,
Forjaram pontes,
E foram inesgotáveis fontes
De superação e de rutilante talento.
Que o diga Aleijadinho,
Inigualável artesão.
Perdurou na sua senda,
Mesmo com problema severo
Em seu corpo, em suas mãos.
Dedicou-se ao labor austero.
Nesse torrão, em que já houve realeza,
Deveriam ser consideradas rainhas e princesas
Mulheres como Maria Firmina dos Reis,
Com muitas loas
E toda certeza!
E tantas outras dessa linda tez.
Aqui, em grande parte,
Ainda não se perfez
A igualdade
Com sua irmã siamesa:
A dignidade.
Muitas mulheres negras
Experimentam a maior brutalidade,
Sem voz,
Na selvageria,
Sem piedade.
E continua a letargia,
A imobilidade.
Algumas são tratadas de modo atroz,
Como ovelhas
Indo para o abate.
É a nossa nação que nesse contraste
Se espelha?
Louvemos os nossos titãs,
Nossos heróis
E sublimes heroínas,
Que, sem condutas vãs,
Não se acovardaram.
Luminosos faróis,
Não se conformaram
Com a sua sina...
Levantaram-se e ecoaram o brado dos escravizados,
Trazendo a lume o seu terrível drama.
Promoveram justiça
E liberdade,
Na incansável liça,
Contra todas as chicanas.
Advogaram por centenas,
Como Luiz Gama,
Que o fez à saciedade,
Com coragem e inteligência apenas.
Ele mereceria uma estátua
Em cada praça
De toda cidade.
Sociedade ingrata!
Há ainda muitos outros que estavam engajados
Em formar um país alvissareiro:
André Rebouças,
Notável ativista e engenheiro.
Vultos outros que jamais escapam do tirocínio:
A exemplo de Lima Barreto e de José do Patrocínio.
Que seria de nossas letras,
Sem os inolvidáveis contos de Machado de Assis?
E do simbolismo,
Sem os versos de Cruz e Souza?
Imaginam isso?
Outros se destacaram na política,
Atingiram a glória,
Fizeram façanha,
Mas foi caso raro na história,
Como se deu com Nilo Peçanha.
E após todos eles enfrentarem muitos embaraços,
Poder-se-ia ainda se aludir
À Antonieta de Barros.
Sua vida é pra qualquer um aplaudir!
Vários outros fulguraram entre os melhores
Nos esportes mais nobres:
Adhemar Ferreira da Silva
Torna impossível qualquer esquecimento.
Que o diga Pelé,
O tricordiano Edson Arantes do Nascimento.
Diante desses gigantes,
E de incontáveis outros,
Conhecidos e anônimos,
Ainda guardo a fé.
Sigo avante!
Perspectivas?
Ações afirmativas,
Medidas construtivas,
Jurisprudência inclusiva.
Eis algumas exitosas alternativas.
Nesse país de tanto contraste,
Em cada tugúrio e esquina,
Há quem bravamente pugna contra o que é espúrio
E ensina,
Com seu agir,
Que ainda temos
Muito a construir,
Porquanto, ao menos por ora,
Mesmo depois de séculos,
Sem mudar muito até agora,
Para a maioria dos negros,
Há só um fiapo de igualdade!
*João Linhares, Promotor de Justiça em MS. Mestre em Garantismo e Processo Penal pela Universidade de Girona – Espanha. Especialista em Controle de Constitucionalidade e Direitos Fundamentais pela PUC-RJ. Eleito integrante da Academia Maçônica de Letras de MS.