A noite caía escura como breu. Nada se via no céu, além de algumas minguadas estrelas distantes e uma nesga de luz da lua nova. Fui dormir bem cedo, pouco depois de as galinhas se aquietarem em seus poleiros. Após aquele dia na fazenda ― correndo atrás da bezerrada, pegando laranja no pé e ralando o joelho no centésimo tombo da semana ao pular a vala de um dos meus esconderijos prediletos no pomar ―, tamanha era minha canseira que cheguei no quarto e não deitei na cama. Desmaiei.
Acordei no meio da noite, na mais completa escuridão, com respingos de água morna em meu rosto. Fechei os olhos molha-dos, prendi a respiração, assustada, e fiquei alguns segundos quieta, tentando entender o que estava acontecendo, morrendo de medo de abrir um olho sequer. E a água voltou a respingar sobre mim, escorrendo sobre meus lábios.
Um gosto amargo me aterrorizou. Não faço idéia de quanto tempo fiquei ali, sem mexer um músculo, quase sem respirar, paralisada pelo pavor. E a água continuava a cair. Quanto mais eu pensava, mais medo sentia. Nada, nadinha de nada que eu conhecesse neste mundo podia explicar o que estava acontecendo. Era uma noite fria e aquela “água” era morna. Como era possível? Minha cama era distante da janela. Apurei os ouvidos e constatei que não chovia ― nem uma garoinha sequer. Não era goteira.
Aos poucos, com o corpo inerte e a mente acelerada ao máximo, exausta por respirar tão mal e descartando possibilidades, uma única e aterrorizante verdade se apossava de mim: pendurado no teto de madeira, a pouca distância de meu rosto, um monstro imenso, com boca escancarada, deixava sua saliva morna escorrer. Meu estômago ficava embrulhado só de imaginar e meu corpo inteirinho começava a doer. Então tomei a decisão: ele pode me morder, me devorar, mas antes eu vou gritar... E gritei: “Paiiêêê!”.
No dia seguinte o cano de cobre do reservatório de água quente foi consertado. Por sorte, o fogão a lenha tinha sido pouco usado e a água da serpentina não se aquecera demais. Além disso, a noite fria ajudou a manter apenas morna a água da caixa. Por pouco “meu monstro” não expeliu uma saliva quente de pelar.
As noites seguintes foram tensas. Apesar da constatação da realidade, sem monstro à vista, a noite me perturbava. Aos poucos, porém, perdi o medo e fui me tornando cética. Passei a duvidar de qualquer ameaça estranha e comecei, desafiadora-mente, a vasculhar a escuridão e as sombras até iluminá-las, destruindo todos os monstros que se atrevessem a aparecer.
Hoje me lembrei dessa história ao ficar sabendo que minha livraria predileta em Dourados ― CANTO DAS LETRAS ―, vai começar a oferecer “contação de histórias” em seu canto das letrinhas aos sábados. A primeira delas, baseada no livro “O domador de monstros”, de Ana Maria Machado, será apresentada pela Profa. Dra. Bruna Paes de Barros ― psicóloga que é mestre e doutora em Ciências da Saúde pela UNIFESP.
Bruna, que se mudou da Pauliceia para Dourados em busca de melhor qualidade de vida, também conta histórias. E o faz prazerosamente, como hobby. Isso é bom demais!
Os monstros que se cuidem. Seus dias estão contados...
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######* Bióloga, mestre e doutora em Ecologia, é também escritora, articulista e blogueira. BLOG: www.mariaeugeniaamaral.com