
Ela era uma criança normal. Pelo sentido de não ter nenhuma deficiência física ou mental, seria talvez, como chamam os psicólogos, de compulsiva, hiperativa e outras denominações técnicas que procuram justificar determinadas ações inexplicáveis. Adorava tocar em tudo. Só havia sentido se pudesse tocar, sentir, apalpar. Uma flor só era bonita se a suavidade aveludada de suas pétalas fosse acariciada; para esse fim é que a natureza as fez sedosas, os tecidos das roupas tinham texturas exatas para roçar na pele, grosseiro, sedoso, quente, frio, incômodo. E assim era, sentir pelo tato, na pele, nas pontas dos dedos.
O apelido de “menina de olhos na ponta dos dedos” foi dado pela mãe que em vão tentou tirar sua mania. Apanhou nas mãos, levou beliscões às escondidas quando visitava a casa de outras pessoas e insistia em tocar em tudo que a visão lhe oferecia. Costume feio repetia a mãe, debalde! O gesto já havia lhe causado sérios problemas, como na formatura do ginásio do irmão mais velho.
No salão de festas do colégio, com intermináveis fileiras de cadeiras de madeira, dobráveis, os discursos se alongavam eternamente, era o que parecia para aquela, cuja primeira vez na vida usara um secador de cabelos. Aquele gigante preso num pedestal que mais parecia uma nave espacial querendo escapar de volta ao seu planeta de origem, barulhento e que aliado ao laquê, uma cola para segurar cabelos rebeldes, com um perfume duvidoso, provocaram um grande incomodo.
Não havia ali nada que pudesse ser tocado; já tinha explorado a textura de sua cadeira, o ensebado do apoio dos braços, o liso lustrado por centenas ou milhares de nádegas nos assentos nos anos que já se passaram, os parafusos que mantinham a cadeira ligada às demais na fila, tudo! Que tédio.
Mas algo lhe chamou a atenção. Logo à sua frente, como tinha podido não ver, estava perdendo o estilo! Uma mulher com um penteado muito na moda, estilo Tereza Goulart, uma “banana”, enrolada com precisão milimétrica e dentro dela parecia ter um enchimento. Era isso mesmo, a menina não se enganara: era Bombril. Escapava por uma pequena nesga do cabelo, possível de se ver somente para os olhos de tédio, daqueles que já se cansou de ter visto tudo ao redor.
Mas como ter certeza, era preciso tocá-lo, cm com a textura saberia a verdade. Então se remexeu na cadeira, deslizou feito lagarta procurando um cato para fazer seu casulo, e apesar dos olhares raivosos da mãe e sob o risco de levar os famosos beliscões, seguiu seu propósito.
O problema da menina estava nas medidas. O braço não alcançava a cabeça, o tão cobiçado objeto de desejo, o Bombril escondido no penteado. Foi então que aconteceu a catástrofe: buscando apoio na cadeira, a traidora se fechou prendendo sua perna. Só quem ficou entalado em uma cadeira dobrável sabe a dor que dá na canela, sem dizer nos braços. O hematoma da canela dava para esconder com calças compridas, mas os beliscões demoraram mais para sair.
Mesmo assim ela continuou. Como os animais que usam o olfato, ela usava o tato. Ia para escola sentindo o chapiscado dos muros, as reentrâncias das paredes, o pelo áspero ou macio dos cachorros com quem fizera amizade, cumprimentando os colegas passando a mão nos seus cabelos, sedosos, lisos, crespos e assim por diante.
Mas um dia, sempre tem o bendito dia, foi traída pela audição. Este sentido era provido de uma ponte, aquela que leva uma informação de um ouvido para o outro, poucas vezes parava no parapeito para deixar um diálogo interessante, algo que pudesse ser usado talvez, quem sabe no futuro.
A manhã que havia começado tranquila mudou com o zum-zum-zum de mulheres. Uma conversa atrás da outra complementava o ocorrido: a paraguaia matou o marido!
A dita paraguaia, se é que tinha esta nacionalidade, era uma mulher muito bonita, morena de cabelos longos e lisos, de olhos puxados e corpo bem feito, valorizado pelas roupas coloridas, longe dos matizes desbotados como as vidas da maioria das donas-de-casa da vila.
Era vista com reservas pelas outras mulheres, não se metia em rodinhas formadas nas eternas varreduras das calçadas, ponto de coleta das informações cotidianas. Também não tinha filhos, uns diziam que nem era casada com o investigador de polícia, com quem vivia. Podia ser por força do seu trabalho, mas quase não ficava em casa e mantinha distância da maioria da população local. Mesmo quando a freguesia feminina ia comprar tecidos da paraguaia, sim, ela vendia cortes de fazendas em casa, o dito investigador não era visto na casa.
A notícia corrente era que ele fora morto a facadas pela mulher ainda que a mesma tinha cortado parte de seu corpo e entregue ao delegado de plantão. Pronto! Estava formada a confusão, a derradeira para a menina com os olhos na ponta dos dedos. Inquirira a mãe sobre o assunto, mas a resposta era sempre a mesma: isso não é assunto para criança descalça! Como saber, sentir a notícia? Companheira de longa data, a menina loira de cabelos encaracolados, que denunciava a sua ascendência negra, e com grandes sardas no nariz, se não cúmplice ativa, aceitava passivamente as idéias da menina do tato hiperativo. Precisavam verificar “in loco” o ocorrido.
Era preciso traças estratégias para chegar ao velório e descobrir qual parte faltava, ouviram falar do pescoço, seria mesmo? Muros e cercas foram pulados, quarteirões aumentados para evitar encontrar algum conhecido que pudesse denunciar a excursão ao local da tragédia. Se as mães soubessem, os braços ficariam coloridos de matizes que variavam do roxo ao verde-azulado.
Finalmente, chegaram ao local onde o corpo estava exposto. A menina começou a pesquisa pelas flores, sentiu suas pétalas que já estavam perdendo o viço ficando moles sem a textura peculiar. As velas choravam deixando um rastro de lágrimas quentes que se desmanchavam ao toque, ficando planas e o rosto do morto, reparou a menina, não tinha a aspereza da barba masculina, estava liso, sedoso, sereno. Olharam por alto, abaixo, dos lados e nada denunciava a mutilação: mãos cruzadas, pés juntos, orelhas e nariz no lugar. Que mistério! O mais importante foi a cura da mania da menina com os olhos na ponta dos dedos; quando tocou no morto e sentiu a textura da morte, fria, impassível e irremediável. Parou de querer tocar em tudo.
*A autora, historiadora e escritora, é associada efetiva titular da cadeira n°34 do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul(IHGMS).
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