Na mesma semana em que a Meta, empresa que agrupa as plataformas Facebook, Instagram e Whatsapp, enfrentou uma série de críticas relacionadas aos seus perfis gerados por inteligência artificial, Mark Zuckerberg, o CEO da Meta, publicou um vídeo que alarmou parte do planeta.
No dia 7 de janeiro, a empresa anunciou o encerramento de seu programa de checagem de fatos, que teve início em 2016 com o apoio de parceiros terceirizados. O programa conta com parcerias com agências independentes em dezenas de idiomas em 115 países. A decisão, apresentada como um movimento para “promover a liberdade de expressão”, levanta preocupações sobre o impacto da desinformação. A partir de agora, o plano da empresa envolve substituir a checagem dos parceiros por um sistema em que os próprios usuários sejam responsáveis por denunciar conteúdo considerado nocivo nas redes.
Para Rodrigo Ratier, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP e um dos fundadores do Vaza, Falsiane, curso on-line contra desinformação que recebeu financiamento da própria Meta entre 2018 e 2019, a mudança enfraquece esforços globais de moderação. “As notas da comunidade, como no X (antigo Twitter), são uma substituição bastante pobre. Elas já demonstraram ser suscetíveis a interesses econômicos e políticos”, afirma. Ratier argumenta que o fact-checking nunca foi a solução definitiva para a desinformação, mas reforça que “é uma ferramenta essencial para informar e munir outros atores no debate público”.
Rodrigo Ratier - Foto: Arquivo pessoal
O professor salienta também que a autorregulação das plataformas está em declínio, já que as agências de checagem, financiadas pela própria Meta, tinham um papel claro: “Elas não derrubam conteúdos, apenas sinalizam. A decisão final sempre foi da Meta”, explica. Segundo ele, as novas políticas comunitárias não possuem o rigor técnico necessário para lidar com o problema.
Professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autora do livro O mundo do avesso – Verdade e política na era digital, Letícia Cesarino concorda que o movimento da Meta representa um alinhamento com a estratégia de Elon Musk no X:”O que a gente percebe do anúncio do Zuckerberg com relação a isso é que a visão dele vai na linha do que o Elon Musk já vinha fazendo praticamente desde que comprou o X, que é atribuir às agências de checagem não uma objetividade ou confiabilidade, mas um viés”, avalia.
Segundo ela, essa mudança não é apenas ideológica, mas também econômica, uma vez que reduz os custos de operação das plataformas ao dispensar moderadores humanos e parcerias com agências de checagem.
Letícia Cesarino - Foto: Arquivo pessoal
A pesquisadora alerta ainda para os riscos associados à polarização política e à automação nesse novo modelo de moderação. “Como vimos recentemente, a inteligência artificial está sendo cada vez mais usada dentro dessas plataformas. Isso potencializa muito mais a [possível] captura do sistema de notas da comunidade por um grupo”, aponta.
Cesarino reforça que, em plataformas dominadas por grupos alinhados a uma visão política específica, como vem ocorrendo no X, as notas da comunidade tendem a reproduzir viés e falsear a realidade, intensificando os impactos de notícias falsas em um cenário já fragilizado pela falta de regulação efetiva.
Liberdade de expressão para quem?
Carlos Eduardo Lins da Silva, especialista em comunicação e colunista da Rádio USP, vê na decisão da Meta um “retrocesso perigosíssimo”. Ele critica a lógica de transferir a responsabilidade para os usuários: “Plataformas não são companhias telefônicas, mas se assemelham a veículos jornalísticos. Elas têm diretrizes e algoritmos que priorizam determinados conteúdos. São responsáveis pelo que é veiculado”.
Lins da Silva associa a mudança à pressão política: “Essa decisão parece uma capitulação ao trumpismo. Em 2021, Trump foi banido das redes por incitar a violência. Agora, com seu retorno à política, vemos essa reversão”. O especialista também ressalta que a retirada de rótulos em temas sensíveis, como gênero e imigração, pode intensificar discursos de ódio.
Carlos Eduardo Lins da Silva - Foto: Maria Leonor Calasans / IEA
Já a professora Roseli Figaro, coordenadora do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho da ECA, questiona o impacto das plataformas na soberania nacional. “A Meta agora utiliza o discurso de ‘liberdade de expressão’ para escapar da regulação. Historicamente, essas empresas agiram de forma dissimulada; agora, apelam diretamente à opinião pública”, avalia. Ela alerta para a apropriação do conceito democrático de liberdade de expressão, que, segundo ela, foi deturpado para significar “liberdade de empresa”.
A pesquisadora aponta também que as plataformas estão, cada vez mais, assumindo papéis políticos. “Não é só uma questão de manipulação algorítmica. Essas empresas decidiram fazer política diretamente, gerindo redes sociais e influenciando decisões globais. Isso exige uma análise profunda sobre os impactos, inclusive no Brasil”, conclui.
Rosely Figaro - Foto: usp-br.academia.edu
O que acontece agora
A Meta anunciou que usuários poderão, a partir do dia 13, se inscrever para moderar conteúdos através do sistema de notas comunitárias, já em uso no X. No entanto, estudos mostram que, em temas polarizados, como imigração, menos de 10% das notas conseguem consenso suficiente para serem publicadas.
Com isso em mente, especialistas acreditam que a abordagem baseada na comunidade pode agravar a disseminação de notícias falsas. “A ‘sabedoria da multidão’ já demonstrou ser suscetível a interesses econômicos. Por exemplo, avaliações por estrelas no Uber ou no TripAdvisor muitas vezes são influenciadas por incentivos dos prestadores de serviços, como corridas gratuitas ou extensões de check-out em hotéis. Assim, é difícil atribuir parâmetros profissionais a avaliações feitas pela audiência”, resume Ratier.
Com o fim do programa nos EUA, ainda não há informações claras sobre os impactos em outros países, incluindo o Brasil, mas mudanças são esperadas.
Diante das circunstâncias, o presidente Lula convocou uma reunião para tratar sobre as mudanças anunciadas nesta semana pela Meta. “Vou fazer uma reunião hoje para discutir a questão da Meta. Eu acho que é extremamente grave as pessoas quererem que a comunicação digital não tenha a mesma responsabilidade do cara que comete um crime na imprensa escrita”, afirmou o presidente para a Agência Gov.
“Agora, com atitudes como a de Zuckerberg, que avalia certas regulações como censura, eles nem se dão ao trabalho de manter o teatro da autorregulação. É como se dissessem: ‘Não precisamos mais disso’”, finaliza a professora Roseli.