Fumar aumenta a possibilidade de infecção?
A Organização Mundial da Saúde (OMS) alertou que o ato de levar os dedos aos lábios para fumar aumenta a possibilidade de transmissão do SARS-CoV-2 (sigla do inglês, Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2) da mão para a boca. Assim como sugeriu que os narguilés, pelo fato de envolverem compartilhamento, podem facilitar ainda mais a transmissão, e que os aerossóis liberados poderiam contaminar os fumantes passivos. Outros autores acrescentaram o risco de o fumante de sofrer queimaduras ao acender o cigarro ou manusear o narguilé após a higienização das mãos com álcool gel. Mas a grande pergunta de se fumar aumenta o risco de infecção pelo SARS-CoV-2 não tem até hoje uma resposta fechada.
"Não existem estudos consistentes que mostrem todos os riscos do consumo de tabaco relacionados com a covid-19 (sigla do inglês, Coronavirus Disease 2019). Considerando a experiência com as outras infeções respiratórias, é possível que os tabagistas sejam mais vulneráveis à transmissão do SARS-CoV-2, por conta do fator mecânico, de aproximar os dedos da boca", respondeu ao Medscape o Dr. Sandro Bedoya, médico do Departamento de Epidemiologia e Métodos Quantitativos em Saúde (DEMQS) da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP), da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
"A literatura mostra que doenças como gripe, herpes simples e tuberculose podem ser transmitidas através de boquilhas de narguilés, e os dispositivos eletrônicos para fumar (ESD, sigla do inglês, Electronic Smoking Devices), que permitem o uso compartilhado, também entrariam neste grupo."
A nicotina protege contra a covid-19?
Os relatórios que avaliam a associação entre tabaco e infecção pelo SARS-CoV-2 têm resultados conflitantes. Há alegações de que a nicotina poderia proteger da doença a partir da observação de que a prevalência dos pacientes fumantes internados era menor da população geral.
A cardiologista e diretora do programa de tratamento do tabagismo do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HCFMUSP), Dra. Jaqueline Scholz, discorda: "A prevalência vai ser menor, porque as pessoas que internam tem mais idade, e a proporção de fumantes é menor na população idosa, seja porque foram a óbito ou porque ficar doente é motivo de cessação", afirmou. Segundo a médica, "a prevalência não é um parâmetro que sugira proteção".
A publicação de uma pesquisa apresentando o tabaco como "protetor" inclusive motivou a reação de um grupo composto de quatro sociedades médicas; Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), Sociedade Brasileira de Patologia (SBP), Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia (SBPT) e Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica (SBCO). O grupo documentou e divulgou o seu repúdio à cobertura midiática de um estudo que sugeriu que a nicotina seria protetora contra a covid-19, destacando que, além de importantes falhas metodológicas, o mecanismo referido como suposto responsável da proteção aos fumantes contra sintomas e doença grave é questionável. Além disso, indicou a presença de potencial conflito de interesse em função de um dos autores já ter sido financiado pela indústria do tabaco.
"Se o cigarro por si só ou a ação direta da nicotina ainda não estão comprovados como potencializadores da ação do vírus, as consequências do tabagismo são fatores de risco para pacientes com covid-19", resumiu o Dr. Jorge Soares Lyra, médico e diretor de comunicação da SBCO.
A OMS já havia alertado para a necessidade de cautela ao confirmar qualquer ligação entre tabaco ou nicotina e prevenção ou tratamento da covid-19, porque não há informações suficientes.
Mas as pesquisas neste sentido continuam a aparecer. No dia 05 de junho foi liberado o pre print de um estudo populacional com dados obtidos pelos Serviços de Saúde de Israel (Clalit Health Services), que têm um banco de dados de 3.000.000 de pessoas. O artigo, escrito por cientistas do Instituto de Tecnologia de Israel, Technion, em colaboração com pesquisadores da Universidade de Haifa e da Universidade Hebraica de Jerusalém, revela uma análise de dados obtidos desde o início da pandemia até 16 de maio. Eles registraram 4.235 testes positivos para SARS-CoV-2. Neste grupo, a proporção de fumantes (9,8%) e ex-fumantes (11,7%) foi menor do que a população geral (19,4% e 13,9%, respectivamente). Os pesquisadores não identificaram uma associação entre o tabagismo e a gravidade da doença.
O Dr. Sandro sugere que é preciso considerar que a amostra do estudo, mesmo sendo proveniente do maior provedor de saúde em Israel de serviços públicos e semiprivados, pode diferir da população geral.
"Precisaríamos ter certeza de que as populações de tabagistas e não tabagistas apresentam probabilidade de contágio semelhante. A presença de alguma comorbidade, como o tabagismo, aliada às campanhas de conscientização mundiais a respeito da covid-19, pode fazer com que os fumantes sejam ainda mais cuidadosos em relação à exposição ao vírus, por saberem dos riscos."
Para o Dr. Sandro, outro fator, que não deve ser esquecido, é o comportamento do tabagista, que está associado a questões socioculturais e legislativas, próprias de cada país.
"Geralmente o tabagista, por decorrência destas questões, circula em ambientes menos confinados e com menos pessoas."
Por fim, o Dr. Sandro salienta que, a "classificação de fumante" é fundamental para analisar o papel do tabaco no risco. "Estudos sobre doença vascular periférica mostram que o status do tabagismo influencia os resultados quando consideramos o paciente como fumante/não fumante e fumante/ex-fumante/nunca fumou."
Mesmo considerando as limitações da pesquisa, os autores concluíram que "o risco de infecção pelo SARS-CoV-2 parece ser reduzido pela metade entre os fumantes, mas eles alertam sobre a necessidade de cautela ao interpretar os resultados.
"Reconhecendo os efeitos destrutivos do tabagismo sobre a saúde, a importância da prevenção e cessação do tabagismo para preservar a saúde e a natureza altamente viciante da nicotina, incentivamos veementemente todos os pacientes a se absterem de fumar, pois os efeitos em longo prazo desse hábito perigoso superam em muito os possíveis benefícios na prevenção da infecção pelo SARS-CoV-2."
Para os pesquisadores israelenses, a associação negativa "pode oferecer novas direções promissoras para combater essa doença, com base em uma melhor compreensão dos mecanismos pelos quais o tabagismo reduz o risco de infecção pelo SARS-CoV-2".
A doença é mais grave em fumantes?
Estudos em células humanas e animais sugerem que substâncias tóxicas presentes no tabaco incrementam as complicações de infeções pulmonares por influenza por meio da supressão de mecanismos antivirais e alterações nos padrões das citocinas nas células, que têm um papel central na imunidade inata da mucosa. Também foi publicado que os marcadores encontrados nas infeções por SARS-CoV-2, como a proteína C-reativa, estavam alterados nos tabagistas crônicos.
As evidências sobre o aumento do risco de gravidade da doença nos pacientes fumantes vêm acumulando. Em uma revisão publicada em 29 de abril, a OMS afirmou que fumantes têm mais probabilidade de apresentar covid-19 grave do que não fumantes. Dias mais tarde, foram divulgados os resultados de uma revisão da literatura de estudos publicados até 12 de maio, que foi revisada por pares, demonstrando que as evidências disponíveis sugerem que o tabagismo está associado a aumento da gravidade da doença e morte por covid-19 em pacientes hospitalizados. A revisão excluiu pre prints e não permitiu quantificar o risco, nem internação com covid-19 nem de infecção pelo SARS-CoV-2 para fumantes.
Uma metanálise de 19 estudos científicos, que reuniu 11.590 pacientes com covid-19 no total, mostrou que o risco de covid-19 grave é quase duas vezes maior entre fumantes do que entre não fumantes. Outras revisões indicam que fumantes apresentam aumento do risco de doença grave (razão de risco ou hazard ratio, HR, de 1,4), necessidade de ventilação mecânica e morte (HR de 2,4). Outro estudo, realizado no Reino Unido, relatou aumento do risco de morte de 1,25 para fumantes versus pessoas que nunca fumaram. O risco diminuiu para 0,88 (0,79 a 0,99) após ajuste para idade e sexo.
Todos os especialistas consultados para esta reportagem coincidem em afirmar que o risco de uma progressão desfavorável da covid-19, com complicações graves tem sido considerado, já que o tabagismo é conhecido por causar bronquite crônica, bronquiolite, enfisema pulmonar e outras alterações que levariam ao declínio da função pulmonar e comprometeriam a resposta frente a uma infecção e porque o tabagista apresenta maior número de comorbidades.
Mas o Dr. Sandro acrescentou: "Embora muitos estudos defendam que o ato de fumar contribui para progressão da doença e complicações graves em pacientes com covid-19, até agora nenhum trabalho demostrou esta hipótese de forma consistente. Por outro lado, existem estudos que não mostram diferenças significativas entre fumantes e não fumantes em termos de progressão da doença".
Existem recomendações baseadas em evidências científicas robustas?
Em contextos de emergência, a má qualidade dos dados é um problema, e a obtenção do histórico do tabagismo, um desafio.
Para determinar o efeito que o tabagismo pode ter sobre a infecção, é essencial que cada pessoa testada para covid-19, e para outras doenças infecciosas respiratórias, seja questionada sobre seu histórico de tabagismo, e que todos os desfechos relacionados com triagem, teste, internação, ventilação, recuperação e óbito sejam avaliados e ajustados para comorbidades como doença cardíaca isquêmica e doença pulmonar obstrutiva crônica (DPOC).
A gravidade da doença muitas vezes não é clara, e a maioria dos estudos disponíveis até o momento não fez ajustes estatísticos para idade e outros fatores de confusão. Nem todas as pesquisas utilizam os mesmos critérios para a definição de "fumante". Alguns pesquisadores consideram, por exemplo, usuários de cigarros eletrônicos como não fumantes.
Assim como todos os aspectos da covid-19, o cenário é dinâmico. Uma avaliação de dados provenientes de sete estudos (1.726 pacientes), que encontrou associação estatisticamente significativa entre tabagismo e gravidade dos desfechos da covid-19, não superou um teste de sensibilidade para ver o impacto de um único estudo sobre os achados da metanálise. A significância estatística desapareceu quando o maior estudo foi removido da análise. Uma versão atualizada desta metanálise, que incluiu outro estudo, voltou a indicar associação estatisticamente significativa.
Outros autores analisaram dados de cinco estudos (1.399 pacientes) e encontraram associação sem significância estatística entre tabagismo e gravidade da covid-19. Mas, posteriormente, foram identificados erros de cálculo, e finalmente, os pesquisadores concluíram que a associação identificada era de fato estatisticamente significativa.
O Dr. Sandro concluiu: "No momento, não temos resposta para essa questão, porém, vale a pena publicar diferentes achados que possam contribuir para o debate e a compreensão dos mecanismos relacionados com o tabagismo e a infecção pelo SARS-CoV-2."
Nas palavras do Dr. Jorge: "Talvez não possamos fazer recomendações baseadas em evidências cientificas robustas, contudo, sabemos que as doenças relacionadas com o cigarro enquadram o fumante na categoria 'paciente de risco'."
É momento para ser tolerante?
Antes da pandemia, a prevalência do tabagismo no Brasil era de 8%. As pesquisas apontam que, provavelmente devido a estresse, ansiedade e depressão em função das crises sanitária e econômica instauradas, houve aumento do consumo de tabaco. Nas primeiras semanas do distanciamento físico (de 24 de abril a 08 de maio) um de cada quatro fumantes (23%) aumentaram o consumo em cerca de 10 cigarros por dia e 5%, mais de 20. O aumento de cerca de 10 cigarros por dia foi maior entre as mulheres (29%) do que entre os homens (17%). Estes são dados obtidos em uma pesquisa feita por meio de questionário on-line, que foi respondido por 44.000 pessoas.
Na Espanha, foi sugerido que as mensagens de saúde pública e intervenções comportamentais vindas do governo, que se concentram em achatar a curva de infecção pelo SARS-CoV-2, também deveriam oferecer informações baseadas em evidências sobre a cessação do tabagismo.
"As doenças relacionadas com o tabaco demoram até 20 anos para aparecer, mas o organismo usa mecanismos de defesa a cada cigarro. O aumento súbito do consumo aumenta as chances de doença cardiovascular aguda. Para quem não estiver preparado para parar de fumar, recomendamos não aumentar o consumo", respondeu a Dra. Jaqueline. Ainda que muitas pessoas fumem mais diante de situações difíceis, "muitas usam o momento para parar de fumar", afirmou a Dra. Jaqueline.
De acordo com o Dr. Alfredo Maluf, coordenador médico do Núcleo de Medicina Psicossomática e Psiquiatria do Hospital Israelita Albert Einstein (HIAE), "nestes tempos de pandemia, o tabagismo deve ser tratado". Ele lembrou que 428 pessoas morrem por dia no Brasil por causa da dependência a nicotina.
"São 156.216 mortes anuais que poderiam ser evitadas. O maior peso é dado pelo câncer, doença cardíaca e DPOC. Agora a covid-19 está matando muitos brasileiros, e o tabagismo é um agravante para o risco de contágio e de morte."
As recomendações de cessação de tabagismo baseadas em evidências já foram publicadas pelo Medscape , mas a situação pede adaptação e inovação em todas as frentes.
O Dr. Alfredo disse que, nos programas de cessação do HIAE, "todas as consultas são feitas à distância, propiciando mais segurança aos médicos e pacientes". Ele acredita que este provavelmente será o novo normal.
O portal da SBC agora oferece um assistente virtual (chatterbot) para auxiliar pessoas que pretendem reduzir ou cessar o consumo de tabaco. O robô, chamado Dr. Cardiol, orienta o fumante a usar as reposições de nicotina e, de acordo com a Dra. Jaqueline, responsável pela iniciativa, aqueles que precisam de tratamentos mais elaborados são orientados a entrar em contato com os respectivos médicos.
O Dr. Cardiol sugere que, antes de parar de fumar, o usuário tente por pelo menos duas semanas reduzir o consumo adotando uma técnica comportamental desenvolvida pela Dra. Jaqueline, chamada "fumar de castigo". O método ainda não foi publicado em nenhum periódico científico, mas teve os resultados preliminares apresentados em 2019 na reunião anual da Society for Research on Nicotine & Tobacco (SRNT) e faz parte dos protocolos de tratamento do Ambulatório de Cessação de Tabagismo do InCor.
A técnica é simples. Baseado no hábito de muitos de tomar café, falar ao telefone, dirigir ou assistir TV fumando, indica, "quando tiver que fazer essas coisas, não fume". Sugere que a pessoa fume em pé, sozinha, em frente a uma parede, sem nada para se distrair ou observar.
A Dra. Jaqueline garante que "fumar de castigo" ajuda a reduzir o consumo e a se descondicionar dos hábitos associados ao cigarro. Se baseia no registro retrospectivo de 281 fumantes instruídos no tabagismo restrito e 324 fumantes aconselhados a parar completamente de fumar em uma data fixa. Os dois grupos receberam tratamento farmacológico, apoio comportamental e aconselhamento telefônico. A taxa de cessação do tabagismo foi de 65% entre os participantes que fumaram de castigo vs. 34% entre os instruídos a parar subitamente.
Como a técnica exige a escolha de um local, sem ventilação, onde o indivíduo vai sistematicamente fumar, outra vantagem seria a redução do fumo passivo. Um problema que pode estar se agravando nos lares, visto que o home office anula a proibição de fumar no ambiente de trabalho.
"O que aconteceu com a Lei Antifumo no ambiente de trabalho tem de acontecer em casa", propôs a Dra. Jaqueline.