Faltariam páginas para descrever o impacto do aplicativo WhatsApp na vida cotidiana das pessoas e das empresas. Fundado em 2009, mas popularizado no Brasil em meados de 2013, o famoso “zap” é, segundo canais especializados de tecnologia, a rede social de mensagens instantâneas mais popular entre os brasileiros.
De acordo com levantamento da We Are Social e da Meltwater, 93,4% dos usuários de internet brasileiros, de 16 a 64 anos, usam o WhatsApp, o que equivale a aproximadamente 169 milhões de usuários. Hoje, a plataforma sustenta o título de mais usada, mais baixada e mais acessada do Brasil. Inclusive, segundo uma pesquisa da Opinion Box, 96% dos usuários acessam o WhatsApp todos os dias.
Na escola, não foi diferente. Seja com clientes, seja com colaboradores, o aplicativo revolucionou a forma de comunicação. São raras as escolas que não dispõem de um canal de atendimento via WhatsApp, tornando praticamente unânime sua adesão, ou seja, as mensagens de texto e os áudios já sobrepõem, com vantagem, os antigos telefonemas ou e-mails.
Efeito colateral
Já se sabe que é um caminho sem volta e, via de regra, as escolas têm convivido com essa nova tecnologia. No entanto, basta uma pesquisa com um universo pequeno de diretores para concluir que há um efeito colateral nesse contexto: as demandas de atendimento nas escolas triplicaram após a formação de grupos de WhatsApp das famílias de turmas com filhos em idade escolar.
Parece haver um contrassenso. Maior comunicação família–escola seria a receita ideal para o sucesso escolar. Maior comunicação entre as famílias poderia significar alinhamento e cooperação. Sem sombra de dúvida, há inúmeros casos de sucesso implantados na escola, dado o potencial gerado pelo WhatsApp, mas não são maioria. Muitos dos grupos formados informalmente pelos pais, muitas vezes, não se sustentam ativos e produtivos. Quando não estão gerenciando algum atrito, desdobram-se em infinitos subgrupos, já com cada vez menos integrantes, retirando aqueles que, de alguma forma, incomodam com mensagens ou opiniões contrárias, desmanchando o efeito de turma. Quando criado pela escola, tornam-se, em alguns casos, listas de distribuição, em que apenas um lado comunica e o outro pouco lê.
O modus operandi da formação de grupos é similar na maioria dos casos: os pais dos estudantes, em geral representados pelas mães, organizam-se informal e rapidamente. Em minutos, um grupo de responsáveis é constituído e iniciam-se as trocas de mensagens informais. O que parece algo normal e sadio acaba tomando conta da rotina das famílias, pelo excessivo número de mensagens dia após dia.
A medida do que se tornou desmedido
A diferença clássica é que, via WhatsApp, o acesso aos pais de cada amigo de turma, que antigamente era apenas quando, por acaso, se encontravam na saída da escola, passa a ser imediato. Opiniões que antes eram mais ponderadas, pois aguardavam, muitas vezes, a famosa e recomendada noite de sono ou o dia seguinte de aula, agora podem ser disparadas em segundos, no calor da emoção. O que era dito “olho no olho”, agora depende de um clique. Aquele “pronto, falei” tem sido usualmente recorrido. E como todo grupo, on-line ou off-line, opiniões e desabafos tendem a encontrar dois grupos: apoiadores e controversos.
A verdade é que a repercussão dessas mensagens nesses grupos, infelizmente em sua maioria, tem tomado rumos não saudáveis à escola. Bem sabemos, até pelas nossas experiências escolares do passado, que os objetivos de uma boa Escola não se findam em um ano letivo e seu propósito não se resume a ensinar. Escolas são nobres instituições vocacionadas a formarem cidadãos. Por isso, convivem com um processo educacional de muitas idas e vindas, avanços e recuos, por ser um categórico local de formação da sociedade, em resumo, um laboratório de vida em comunidade. As escolas marcam vidas e vão muito além de um mero prestador de serviço, tampouco com resultados no curto prazo, especialmente quando se refere à formação de caráter e convívio social.
Ou seja, haverá na escola, pela natureza de seu trabalho pedagógico e formativo, momentos de maior “turbulência”, envolvendo a mediação de conflitos, a correção de atitudes não saudáveis, a formação de valores de vida e a apresentação de hábitos que levarão cada criança a ser, ao menos, uma pessoa com caráter e consciência social. Ou seja, é pressuposto de um ser humano em formação alguns fracassos, frustrações, medos, bem como superações, celebrações e alegrias, em todos os casos, gerando aprendizados. Como dizia um dos mais famosos psicólogos organizacionais, Karl Weick, pequenas vitórias são importantes e cruciais em escolas.
Contudo, infelizmente, sem muito critério, um pequeno fato disseminado em um grupo de WhatsApp de pais torna-se pauta de discussões intermináveis. De maneira impressionante, por vezes, pequenos ou irrelevantes fatos corriqueiros da rotina escolar podem tomar proporções inimagináveis e desdobramentos completamente adversos no calor de uma noite de conversas. Estudantes, escola e educadores são, inevitavelmente, expostos a julgamentos, comentários e brincadeiras muitas vezes descontextualizadas. Não raramente, esses grupos de Whatsapp amanhecem com inúmeras mensagens envolvendo a rotina do dia anterior.
O alicerce formativo em xeque
Inevitavelmente, por vezes, os filhos estão a par de toda discussão. Tal fato tem gerado, por consequência indireta, uma cultura de desconfiança e medo, nada saudável, que começa a tomar conta das famílias e minar aquela saudável e necessária relação iniciada pela Escola. Imersos em um “mar de áudios, mensagens e opiniões”, em sua maioria superficiais, algumas superprotetoras e outras até infantis, famílias ficam sem referência, colocando em xeque, em algumas vezes, até a escolha da escola para educação de seus filhos. No fundo, todos perdem.
O pior cenário é quando, na ânsia por tentar resolver algumas situações e assuntos de alta audiência nesses grupos, prints de conversas são enviados por ditos “representantes de turma” à escola e aos educadores. Diante desses registros, muitas vezes com posições radicais, linguagem inadequada, figurinhas, áudios intermináveis, e até alguns julgamentos da prática docente, os educadores têm desistido, tamanha desmotivação. Alguns docentes desistem no decorrer do ano letivo, abandonando a turma no percurso. Nesse contexto, que não é incomum, a relação mais nobre, bela e importante para a escola, até então resguardada por respeito, diplomacia, paciência e prudência, é desgastada: a relação família–escola.
O setor educacional, que já conta com a projeção de um possível “apagão” de aproximadamente 235 mil professores em 2040, dada a crise de remuneração, carreira e prestígio no Brasil, tem seu cenário agravado. Além disso, somam a essa conta um novo perfil de turma de alunos. Com a alta exposição das crianças e dos adultos às telas, pais e filhos têm ficado com cada vez menos interação. Dessa forma, o esforço docente em sala de aula tem sido infinitamente maior, pelo aumento ano a ano de alunos com acentuadas limitações motoras, cognitivas e emocionais, com cérebro “esgotado e cansado”, muitos deles em terapias ou com distúrbios de visão, sono e ansiedade. Isso sem contar o aumento expressivo de alunos neurodivergentes, que complexificam ainda mais o ensino e o trabalho docente, exigindo das crianças cada vez mais habilidades sociais para conviver em sociedade.
É fato, a sala de aula tem sido um ambiente cada vez mais complexo, para que seja exposta e discutida de maneira tão superficial. Imenso tem sido o esforço da escola para explicar, da melhor maneira possível, situações corriqueiras da rotina e detalhes próprios e inerentes à infância. O resultado tem sido um acúmulo de reuniões sobre coisa alguma e, se não houver controle, uma acentuada diminuição de autoridade do professor e da escola para ensinar e transmitir valores.
A palavra da vez: aliança.
Pasmem! Muitas das situações envolvendo o dia a dia das crianças já foram resolvidas em sala pelo professor ou algumas delas pelas próprias crianças, que aprenderam e se entenderam ou até já esqueceram. Contudo, por incrível que pareça, continuam criando polêmica, causando em alguns casos, tristes intrigas entre os pais, reverberando os famosos “textões” nas redes sociais, que magoam toda relação e são completamente desnecessários.
É urgente: escola e família precisam dar um passo a mais. A parceria escola e família precisa amadurecer, tornando-se uma aliança, com base plena na confiança. Assim como no relacionamento a dois, quando se tem uma aliança, há clareza sobre o enfrentamento de processos, desafios e vitórias futuras. Ou seja, há confiança de ambos os lados para seguir, sem questionamentos sobre tudo, o tempo todo. Afinal, a escola é a Instituição criteriosamente escolhida pela família, após complexa pesquisa, visita e entrevista. É preciso, antes de tudo, confiar no trabalho a ser feito e apoiar as ações de formação dos filhos, entendendo que o processo é importante ser feito a várias mãos da Escola e da Família.
Ainda assim, Escola e Família juntos, como verdadeiros aliados, haverá desafios! Escola e Família precisam perseguir juntos temas como o cyberbullying, as competências socioemocionais, a falta de valores humanos, a falta de foco, concentração e interesse pelo trabalho e esforço. Devem, ambos, unir forças em favor do aprendizado sobre resiliência, ensinar sobre a tolerância ao erro, a autorresponsabilidade, o valor da honra aos pais e suas histórias, entre tantos outros temas esquecidos, que são, estas sim, pautas da escola. Ao focar na pauta genérica dos grupos, corre-se o risco de restringir a formação humana a pautas muito pequenas, subutilizar a escola, menosprezar a sua função formativa. Corremos o sério risco de, como escola, nos decepcionarmos ao ver uma geração fraca, emocional e cognitivamente, que focou no trivial e errou no essencial, que abriu mão de sua essência.
Não causa espanto o fato de que famílias que simplesmente optam por não estarem inseridas em grupos de WhatsApp sofram menos com questões do dia a dia dos filhos. Buscam acessar os pais em último caso, priorizando sempre a família e a escola. Levam a relação com a escola de maneira mais leve, confiam mais, entendem melhor os processos, e são, na maioria das vezes, mais adaptáveis, porque aprendem com os erros, os próprios e os da escola. Enfim, permitem-se ser pais em idade escolar dos filhos. Abrem mão da imagem de boa mãe e do registro diário da lancheira na internet. Em vez disso, agem pelo exemplo, lancham com os filhos, interagem mais em casa, e não tentam prever todas as situações, tampouco resolver e preparar todo o caminho dos filhos, deixando-os livre dos necessários e saudáveis aprendizados da vida. Aliás, a Folha de São Paulo já alertou em 2019 sobre o perigo dos pais ditos “limpa trilhos”, aqueles que evitam todo e qualquer obstáculo na vida dos filhos, o que é péssimo à formação dessas crianças.
No intuito de somar, boas práticas são recomendadas às famílias: a) não entrar em qualquer discussão de grupo, seja on-line ou off-line; b) entender que o processo educativo, disciplinar e pedagógico é único para cada criança e confiado à escola; c) confiar na escolha da escola, pois certamente envolveu critérios bem pensados que não podem ser colocados em xeque antes do diálogo com a instituição; e d) evitar reuniões em grupo, pois cada criança tem seu processo de aprendizagem, adaptação e convivência escolar.
O famoso e polêmico filme da Netflix O Dilema das Redes teve como abertura a citação de Sófocles, “nada grandioso entra nas vidas dos mortais sem uma maldição". Para evitar uma profecia autorrealizável, é preciso que Escola e Família entrem, de verdade, em cena, sem um “cabo de guerra”, mas de mãos dadas, sabendo que, ainda assim, haverá desafios. Essa é uma missão para educadores de alma e famílias ditas “raiz”, no sentido de enraizadas nas virtudes humanas, nítidas nas maiores mentes que pisaram na humanidade.
Haroldo Andriguetto Junior é Pai, Mestre em Administração, Doutor em Educação, Diretor da Escola O Pequeno Polegar e Vice-Presidente do SINEPE/PR.