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Doutorando da UFGD analisa as redes da migração haitiana no Mato Grosso do Sul

18 Out 2019 - 11h31Por Redação
Alex Dias de Jesus é doutorando no Programa de Pós-graduação em Geografia da UFGD - Crédito: DivulgaçãoAlex Dias de Jesus é doutorando no Programa de Pós-graduação em Geografia da UFGD - Crédito: Divulgação

Longe dos grandes centros urbanos com ofertas de emprego mais abundantes, as cidades de Mato Grosso do Sul são atraentes para os migrantes haitianos principalmente por causa das redes de parentes, amigos ou conhecidos que já estão no estado e facilitam de alguma maneira a chegada dos demais, seja enviando dinheiro, informações ou dividindo o aluguel na cidade de destino. A permanência, no entanto, vincula-se ao emprego em indústrias de médio e grande porte no interior do estado.

Analisar as dinâmicas dessa migração é o foco da tese de Alex Dias de Jesus, professor do Instituto Federal do Piaui (IFPI) e que está fazendo  Doutorado em Geografia da UFGD. Nesta entrevista, o pesquisador comenta sobre as características dos migrantes em MS, o que os douradenses podem fazer para colaborar com os haitianos, os novos fluxos que se deram a partir da crise econômica no Brasil, a criação de políticas que querem impedir a mobilidade dos migrantes nos vários países americanos, os riscos de roubo e agressão no trajeto pelo continente, a vulnerabilidade frente aos agenciadores de contrabando de pessoas e sobre como o aplicativo WhatsApp tem ajudado na troca de informações entre os migrantes.O orientador do trabalho é o professor Jones Dari Goettert.

O título da tese que Alex Dias está finalizando é "Redes da migração haitiana no Mato Grosso do Sul" e contou com um período de estágio de Doutorado Sanduíche na Universidad de Guadalajara, com bolsa CAPES, quando pôde acompanhar novos fluxos da migração dos haitianos entre México e Estados Unidos. Esse estágio foi importante para verificar in loco a realidade de quem saiu do Brasil e ficou na fronteira do México buscando entrada nos EUA. De acordo com os dados do El Colegio de la Frontera Norte (El Colef), durante o ano de 2017, nove de cada 10 haitianos nos albergues de Tijuana (México) eram procedentes do Brasil. 

Confira a entrevista na íntegra:

Mesmo com a desaceleração da economia em 2015 e 2016, os primeiros meses de 2018 registraram a vinda de aproximadamente 1,2 mil haitianos por Corumbá. Por que o MS está entre os destinos dos migrantes haitianos? 

Alex Dias: Há uma estreita relação entre a mobilidade haitiana e as políticas migratórias no mundo inteiro e mais recentemente na América do Sul. Assim como o Brasil, o Chile também se tornou um importante destino dessa migração nos últimos anos, inclusive com haitianos que saíram do Brasil em um período de retração do emprego, principalmente entre 2015 e 2016. Porém, a eleição de Sebastián Piñera para a presidência do Chile, em 2018, trouxe mudanças na política migratória chilena que passou a restringir a entrada e a permanência de haitianos no país, bem como estimular a saída através do pagamento de passagens de volta para o Haiti em troca do compromisso de não retorno em um período de nove anos.

Como muitos deles possuem familiares e amigos no Brasil, passaram então a redefinir os projetos migratórios, saindo do Chile, atravessando a Bolívia e ingressando no Brasil através do município de Corumbá. Mas, diferente dos anos anteriores em que podiam solicitar um visto humanitário em diversas repartições consulares do Brasil no exterior, desde abril de 2018 esse visto só é emitido no Haiti, o que dificulta para quem já está fora do país há meses ou anos. Por isso, os haitianos que chegam em Corumbá estão indocumentados e geralmente são mais vulneráveis a roubos e extorsões.

Quais as características dessa migração?

Alex Dias: Trata-se de uma migração de adultos jovens, com maioria entre os 25 e 35 anos, justamente a faixa etária que melhor se insere nas atividades laborais destinadas aos migrantes, principalmente nos frigoríficos. Nos anos iniciais, a presença masculina era quase exclusiva, mas hoje as mulheres representam mais de 40% do total no estado. Quanto à escolaridade, predomina a educação básica incompleta, embora algumas pessoas tenham graduação e domínio de vários idiomas.

Aqui no Mato Grosso do Sul, os primeiros chegaram via recrutamento de empresas localizadas nos municípios de Três Lagoas, Itaquiraí e Campo Grande. Com o tempo ocorreu uma dispersão para Nova Andradina, Naviraí e principalmente Dourados, onde registramos o maior crescimento nos últimos dois anos: de cerca de 300 pessoas em 2017 para mais de 800 em 2019. Dois fatores ajudam a explicar essa mobilidade interna entre os municípios do estado: o mercado de trabalho e as redes de solidariedade entre os próprios haitianos.

Pelos relatos dos haitianos que você entrevistou para a sua pesquisa, como é a receptividade dos douradenses? Quais desafios são mais comuns? 

Alex Dias: Nas minhas entrevistas pude conhecer haitianos de várias regiões do Haiti, assim como de diversas classes sociais e níveis educacionais. Isso tem influenciado na maneira como se inserem nos locais de destino. Para aqueles escolarizados, com fluência em mais de um idioma e com experiência migratória em outro país, a integração com brasileiros parece menos difícil. Em Dourados, pude perceber que os laços sociais entre os haitianos são bastante densos enquanto com os douradenses os laços são mais frágeis, geralmente restritos ao ambiente de trabalho.

O que as pessoas podem fazer para colaborar? Você conhece algumas iniciativas, como por exemplo o projeto da UFGD que ensina Português?

Alex Dias: Penso que o primeiro passo que nós brasileiros devemos dar em direção à acolhida é compreender o significado de uma migração de crise, que é o caso dos haitianos e dos venezuelanos. Quando falo em migração de crise, quero dizer que a saída do país é, para grande parte da população, a única alternativa frente à instabilidade política, ao desemprego estrutural e à pobreza extrema. São pessoas com muita vontade de reconstruir suas vidas e por isso precisam de oportunidades tanto laborais quanto educacionais.

Ao longo dos quase dez anos de migração haitiana no Brasil, a maioria das iniciativas de ajuda partiu da sociedade civil, igrejas, universidades e voluntários independentes. Em Dourados não é diferente. Desde o início de 2017 um grupo de voluntários oferece aulas de Português gratuitamente. Essa iniciativa foi transformada em Projeto de Extensão da UFGD alguns meses depois e hoje conta com seis turmas em vários locais da cidade, envolvendo 12 voluntários. Durante esse período, cerca de 200 haitianos frequentaram as aulas e puderam se aproximar do idioma e da cultura local. Há também outro Projeto da UFGD, através da Cátedra Sérgio Vieira de Mello, que presta orientação para a regularização documental, seja passaporte, vistos, CPF, Carteira de Trabalho, dentre outros.

As pessoas podem ajudar contratando um imigrante; com doações de roupas e alimentos para aqueles que ainda estão desempregados; doando seu tempo ou algum material para o ensino de Português ou até com ações mais simples do dia a dia como um auxílio no Posto de Saúde ou no supermercado.

Depois da crise humanitária que teve um ápice com o terremoto de 2010, muitos haitianos vieram para o Brasil, mas passaram em 2016 a buscar entrada nos EUA, fazendo esse caminho por terra, ou seja, cruzando as Américas do Sul e Central pelas fronteiras de vários países. Quais os principais obstáculos que você percebeu nos relatos dos migrantes? A selva do Darién, por exemplo, traz quais perigos?

Alex Dias: Em 2016, milhares de haitianos deixaram o Brasil e se arriscaram por uma longa e perigosa viagem atravessando diversas fronteiras terrestres desde o Brasil até o México, tentando entrar nos Estados Unidos. Só para se ter uma ideia, em pesquisa realizada pelo El Colegio de la Frontera Norte (El Colef), foi constatado que, durante o ano de 2017, nove de cada 10 haitianos nos albergues de Tijuana (México) eram procedentes do Brasil.

As viagens duravam em média de dois a três meses, a depender dos recursos e dos obstáculos que encontravam no caminho. Como se tratava de uma migração indocumentada, ou seja, sem visto de entrada em alguns países, eles ficavam expostos a roubos, às extorsões da polícia ou dos coiotes e até mesmo à morte, como aconteceu com migrantes na Nicarágua e na Selva do Darién, no Panamá.

A Selva do Darién é uma densa floresta entre a Colômbia e o Panamá. É o único trecho de descontinuidade da rodovia Pan-Americana, que liga o Alasca até a Patagônia. É uma área montanhosa, com muitos rios e por isso de difícil travessia. Somente caminhando vários dias e utilizando barcos é possível atravessá-la. Ouvi relatos de migrantes que cruzaram com corpos no caminho. Pessoas que morreram afogadas ou de fome e lamentavelmente não conseguiram dar continuidade à viagem.

Observando a proximidade geográfica do Haiti com os EUA, chama a atenção a enorme distância que estão percorrendo por via terrestre depois de saírem do Brasil, tentando entrar pelo México. Quem lucra com a migração ilegal? 


Alex Dias: Pois é, chama atenção uma migração tão longa, atravessando mais de 10 países do continente. Essa é a alternativa para evitar a deportação, caso entrem por via aérea. Na quase totalidade dos casos, os haitianos apenas passam pelos países e não permanecem. A história recente tem mostrado que impedir o trânsito não diminui a migração, mas empurra os migrantes para travessias clandestinas, mais onerosas e perigosas. Nesses casos, entram em ação os agenciamentos para o contrabando de pessoas que cobram para auxiliar os migrantes no trajeto, mas não podem garantir segurança nem o sucesso da migração. Por trás de uma medida restritiva há uma “rota de fuga”, um escape que pode dar certo ou pode dar errado.

Como você avalia a tentativa de alguns países em impedir o trânsito de haitianos? Como funcionam as barreiras institucionais e a criminalização? 


Alex Dias: Nas últimas duas décadas, o aumento dos fluxos de migrantes ao redor do mundo veio acompanhado de medidas restritivas à mobilidade humana. Em muitos países, além de impedir a entrada dos migrantes, as barreiras institucionais dificultam a regularização daqueles que já estão dentro e isso provoca o surgimento de pessoas em situação indocumentada. Isso significa que essas pessoas enfrentarão dificuldades para conseguir ou se manter em um emprego, dificilmente conseguirão estudar e se tornarão mais facilmente explorados no destino.

Qual a diferença entre migrante e refugiado? 


Alex Dias: O impedimento de entrada de refugiados é ainda mais grave, tendo em vista que se diferem dos migrantes tradicionais por estarem fugindo de algum tipo de perseguição ou por existir um fundado temor de perseguição. Nesses casos, voltar ao país de origem põe em risco a própria vida. Em tese, os países signatários da Convenção de Genebra de 1951 – Convenção das Nações Unidas que regulamenta a matéria no Direito Internacional – não podem devolver um refugiado que se encontre dentro de suas fronteiras, exceto se comprometer a ordem pública ou a segurança nacional. Na prática, muitos solicitantes de refúgio têm seus pedidos negados e permanecem arriscando suas vidas no país de origem ou em outros destinos.

E na teoria, os haitianos deveriam ser considerados refugiados?


No Brasil eles não são considerados refugiados, mas essa questão não é consensual. Considerando que as solicitações de refúgio são analisadas individualmente, talvez alguns haitianos pudessem obter o status de refugiado baseado em algum tipo de perseguição ou grave e generalizada violação dos direitos humanos. Entretanto, os haitianos que estão no Brasil representam uma diversidade muito grande e muitos deles não sofreram violações que justificariam esse tipo de proteção.
A lei 9.474/1997 – O Estatuto do Refugiado – define que, além das perseguições, a grave e generalizada violação dos direitos humanos é motivo para conceder o status de refugiado. Para os haitianos, assim como acontece com as demais nacionalidades, deve-se analisar os casos individualmente.

A comunicação virtual pelo aplicativo WhatsApp apareceu como um dado relevante na sua pesquisa. Como essa troca de informações colabora para os migrantes atravessarem os países?


Alex Dias: As migrações atuais estão profundamente marcadas pelo desenvolvimento dos meios de comunicação e transporte. Eles contribuem para estimular a mobilidade das pessoas na medida em que encurtam o tempo de deslocamento e propiciam informações atualizadas do destino e do caminho. Obter informações detalhadas pode fazer muita diferença na hora de migrar. Ter um aparelho celular e conexão com internet é fundamental na migração haitiana, por exemplo. Por meio do aplicativo WhatsApp circulam informações sobre que ônibus pegar, que tipo de documentação é necessária para entrar em determinado país, sobre quem procurar quando chegar em determinado local, enfim, uma série de recursos que diminuem os riscos e os custos das viagens. Na migração recente dos haitianos pelo continente americano, as rotas estabelecidas podem mudar quando um migrante anterior avisa dos perigos que encontrou no caminho. São estratégias de contornar as barreiras físicas ou jurídicas impostas à mobilidade atual. Então essa troca de informações tem sido intensa, mas é seletiva. Precisa haver algum tipo de confiança para obter certos detalhes.

 

Fonte: UFGD
 

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