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Davi Roballo

Eu converso com gente morta

08 Mar 2016 - 08h55
Eu converso com gente morta -
Davi Roballo

Atualmente, poucos são os escritores que não se deixam levar pelo frenesi do consumismo, da fama, o escrever para sobreviver escrevendo o que os leitores querem ler. Por isso, e um pouco mais, os autores antigos continuam soberanos na arte da escrita, embora empoeirados nas livrarias. A preocupação dos antigos sempre foi repassar conhecimento, semear a arte da perquirição, da dúvida, do autoconhecimento, revelando a vida como ela é, e nos aproximando da realidade. Ler é travar diálogo silencioso com quem escreveu, e por preferir os autores antigos, vivo dialogando com gente morta.


Ler autores do passado é observar a disparidade de conteúdo que há entre eles e muitos autores atuais, que mais se enquadram no tipo mercenário. Não é difícil encontrar livros repletos de verborragias com o fim de preencher o vazio de um papel e fazer volume a algo que muitas vezes deixa de ser uma arte para transformar-se em mercadoria. Escrever é uma arte que exige responsabilidades, entre elas a de repassar conhecimento e fomentar a discussão a respeito do que se discorre em um livro escrito.


Os escritores antigos em sua maioria foram antes de tudo leitores inveterados, por isso não se submeteram a escrever o que o leitor queria ler e muito menos deram ouvido a critica especializada, pois segundo Nietzsche: "Todo bom livro é escrito por um leitor determinado e por aqueles de sua categoria; é precisamente por isso que todos os outros leitores, ou seja, a grande maioria, o recebem muito mal; por isso sua reputação repousa sobre uma base restrita e só pode ser edificada lentamente. O livro medíocre e ruim é bem recebido justamente porque procura agradar e agrada a todos".


Nas livrarias podemos encontrar bons escritores, como Gabriel Garcia Marques, Saramago, Humberto Eco e o brasileiro Rubem Alves (falecidos há pouco), entre outros, que nos despertam de letargias intelectuais que muitas das vezes desconhecemos. São escritores que a modo dos antigos nos despertam o raciocínio a respeito da vida, do existir e de nossas relações sociais com todas as suas nuanças, benesses e falhas. Livro bom é aquele capaz de despertar a capacidade de comparação, inquietação e reflexão, deixando em nós o deleite de tê-lo absorvido e o entendido.


A leitura através dos livros para delinear sua eficácia, tem de servir de chave-mestra para as portas que conduzem aos mistérios da existência, tem de produzir um terremoto em nossas concepções estacionárias e entregues ao ócio do comodismo, tem de servir de espelho, capaz de mostrar nossas imagens e nossas ações reproduzidas nas letras, para que assim venhamos acordar da sonolência em que a existência nos submete ao aceitarmos o modelo daquilo que não somos.


Atualmente o gesto de ler está tão banalizado, que virou sinônimo de passatempo, quando que sua real acepção é a de promover inquietação ao nosso ostracismo intelectual e a libertação do Ser de sua escravidão voluntária.


A febre do consumismo em voga tem nos arrastado para o ato de ler um livro porque a crítica comprometida com o sucesso do mesmo disse que é bom. Estamos perdendo a noção de que quanto mais popular uma obra, menos conteúdo, menos arte, menos criatividade se acerca dela. Numa época do grotesco e da futilidade, as grandes obras continuam sendo uma saída e um farol para quem gosta de movimentar-se por todos os caminhos possíveis da vida, mas ainda tememos conversar com gente morta, mesmo que seja através de livros.


Jornalista, Especialista em Comunicação e Marketing / Especialista em Jornalismo Político. e-mail: [email protected]

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