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Julio Capilé

A vida na porteira

04 Mai 2016 - 06h00Por Do Progresso
A vida na porteira -
Beirando o rio Apa rumo à sua foz, havia um trilho à guisa de estrada onde só passavam carretas de boi ou cavaleiros. Fazia a comunicação entre Bela Vista e a fazenda Caracol. Em frente à porteira dessa fazenda, havia um povoado incipiente cujo comércio era constituído de apenas dois bolichos. Todo bolicho daquele tempo tinha como base de sortimento: cachaça e outras bebidas, fumo em rolo, charutos "pôguaçu", sardinha e cocada em lata, extratos (perfumes) Royal Briar, brilhantina Gaby, sabonete Dorly, balas (revólveres 32,38,44 e Winchester 44), pólvora, chumbo, espoletas, fósforos, querosene, velas, pregos, lenço de seda, linhas e agulhas. A fazenda em cuja porteira situavam-se os bolichos, pertencia à Empresa Mate Laranjeira ou aos Mendes, donos da mesma. Nos domínios da Empresa, havia a lei seca e os bolicheiros ficaram estrategicamente situados próximo à saída da fazenda. Quem dela saísse para ir a Bela Vista ou a Porto Murtinho, forçosamente passava frente ao comércio e, é lógico, quebravam a lei seca. O 10° R.C.I. de Bela Vista criou um Destacamento de Fronteira nesse povoado.


O local não oferecia nenhum conforto às famílias do tenente e dos sargentos casados. Quando chegava um novato para assumir o cargo, geralmente vinha em lua de mel. A esposa jovem e muitas vezes não acostumada ao desconforto. Todos os vizinhos amenizavam os primeiros dias oferecendo alimentação, algum cômodo na residência, etc. Tenente novo, casado, normalmente não tinha filho, o que facilitava, mas a primeira gravidez da esposa representava preocupações durante meses e o parto tinha que ser feito em Bela Vista. A "estrada" era só para cavalo. Carro motorizado não vinha a não ser em casos de emergência extrema. O povoado, se não me falha a memória, umas 12 léguas de Bela Vista, portanto um dia e meio a cavalo. Já imaginaram uma mulher no final da gestação na montaria? E era no cilhão (cela feminina) que tinha um gancho para a perna direita e a mulher vinha sentada de banda, como diziam. A viagem tinha que ser mais vagarosa e levava dois dias. Com o passar dos tempos, foi abolido o cilhão; acho que aumentou o desconforto.


Esses militares desbravadores e suas esposas merecem lembrados com carinho pois além de falta de conforto, perigos da fronteira, suas esposas sempre ficavam sós por ocasião do parto, pois os maridos não podiam abandonar seu posto para acompanhá-las.


O povoado foi-se desenvolvendo pouco a pouco e quando ganhou cidadania, mudou de nome para Caracol. Essa cidade que hoje apresenta a pujança do desenvolvimento como todas as congêneres do Sul de Mato Grosso (hoje MS) merece um monumento àqueles bravos militares que com precário material mantinham-se alegres, achando tudo natural e com coragem, amor e patriotismo mostravam que muita coisa se pode fazer em qualquer lugar apesar das dificuldades. Eles deixaram sua marca. Lá está a cidade de Caracol.


Hoje, ainda existem muitos destacamento de fronteira alguns dos quais carecem de conforto, mas não devem ser nem parecidos com os destacamentos de Porteira, Casal Vasco, Porto Esperidião, Ipê Jhum, Capitán Bado, etc. Hoje, há estrada ou comunicação fluvial, telefone até celular, aviões para alguns. Mesmo assim, lembremos, com amor fraterno, admiração e respeito, esses moços que guardam nossas fronteiras e levam às populações circunvizinhas a educação e o civismo. É lá que o civismo é mais cultivado e quem serve num desses destacamentos imprime o patriotismo entre matutos e camponeses.

Médico. Escreve às quartas-feiras. e-mail: [email protected]

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