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Wilson Valentim Biasotto

A doença sem metáforas

18 Jun 2016 - 06h00
A doença sem metáforas -
Ouando jovem, realizei um curso de "admissão", que era uma espécie de vestibular para ingressar no ginásio. Decorei todas as capitais dos estados brasileiros e dos países de todo o Mundo. As matérias eram decoradas, a história nem se fala, mas felizmente nas últimas seis décadas os historiadores passamos a valorizar os processos que promoveram transformações sociais. Nesse contexto estudei vários temas a exemplo do "itinerário das moléstias infecciosas", as "repercussões da Peste Negra" e "a doença como metáfora".


Os idosos, evidentemente, vez ou outra somos submetidos a exames que nos deixam apreensivos. Que será, que não será? Felizmente hoje a doença já não é mais tratada como metáfora, mas com absoluta transparência. Faço uma pesquisa no Google sobre o tema e, surpreso, encontro uma crônica que eu próprio escrevi sobre o assunto em 2012.


A hanseníase, a tuberculose, a demência, eram temas proibidos, as pessoas eram afastadas do convívio social. Crianças com Síndrome de Dow eram escondidas nos fundos de quintais e câncer era impronunciável. A doença era tratada com metáfora, doença ruim, ferida brava.


A escritora norte-americana Susan Sontag (falecida em 2004) escreveu uma das obras mais expressivas sobre "a doença como metáfora". A autora lançou essa obra no início dos anos de 1980 e teve a coragem de examinar as metáforas existentes em torno do câncer, ora como doença romantizada, ora, demonizada.


Trinta e cinco anos após essa obra ter sido lançada, já não existe absolutamente mais nada romantizado ou demonizado. Qualquer pessoa sabe se está ou não acometido pelo mal e a maioria conhece exatamente as possibilidades de cura ou da sobrevida que lhe resta, conforme o caso.


Não há mais espaço para as metáforas sobre as doenças. As ciências médicas evoluíram vertiginosamente. Aparelhos moderníssimos e exames minuciosos são capazes de detectar a doença ainda embrionária. Ninguém mais é iludido, os hospitais não camuflam os seus nomes, são específicos para o tratamento de câncer e toda a cidade de porte médio procura edificar o seu.


Não sei se no passado as pessoas morriam com câncer sem que a moléstia fosse diagnóstica ou se ela se alastrou no mundo atual pelas condições de vida que levamos. Creio mais nessa última hipótese.


Dom Redovino, em artigo no jornal "O Progresso", com o emblemático título: "Prepare-se, todos vamos morrer de câncer", adverte que essa doença nos atinge com os produtos que nos chegam à mesa, com a água que tomamos contaminada por agrotóxicos, pelo sedentarismo, obesidade e pelo estresse.


O estresse é a somatização do trabalho excessivo, com as contas vencidas, com o trânsito caótico, com a frustração, a desilusão, a intolerância, enfim, males acarretados por um mundo maluco no qual nos sentimos sós, mesmo estando rodeados nas ruas, nos ônibus, nos metrôs, por centenas ou mesmo milhares de pessoas, alheias, ensimesmadas, enclausuradas, encasuladas, com medo, cansaço e incerteza.


Além do estresse eu acrescentaria como ingredientes diretamente ligados ao aparecimento do câncer, as desilusões e desgostos que a vida contemporânea nos acarreta, as mágoas que nos corroem as entranhas e o ódio oriundo de ressentimentos acumulados.


Não obstante o progresso das ciências que cuidam de nossa saúde, o câncer continua agredindo a sociedade contemporânea, levando ao sofrimento não somente quem tem a dor na própria carne, mas também os familiares que padecem tanto psicologicamente quanto pela mudança em seus afazeres, pelos cuidados que dispensam ao enfermo.


O câncer deixa de ser tratado como metáfora, mata-nos, mas se por um lado estamos conscientes dessa realidade nua e crua, por outro, continuamos a nos autodestruir. Estudo recente realizado por uma enfermeira australiana constatou entre 19 doentes terminais que o maior arrependimento deles era ter trabalhado demais. Para que?


Creio, sinceramente, que se ao invés de inventarmos aparelhos cada vez mais sofisticados para combater o câncer, conseguíssemos edificar uma sociedade mais justa, mais fraterna e mais igual, teríamos melhores resultados. A solidariedade, o perdão e, principalmente o amor ao nosso semelhante, seriam muito mais eficazes que as máquinas para substituir o câncer por saúde.


Sábado próximo conto-lhes mais coisas sobre esse tema.

Membro da Academia Douradense de Letras. e-mail: [email protected]

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