Dia a Dia

Professora descobre raiz indígena em poema de Emmanuel Marinho

Gislaine Ajala foi adotada ainda criança e se reconheceu Guarani em seu trabalho de conclusão de curso

6 FEV 2021 • POR Gracindo Ramos • 14h35

Criada fora das comunidades indígenas, a professora Gislaine Gamarra Ajala Félix, de 23 anos, descobriu através de um poema do poeta douradense Emmanuel Marinho a sua identidade Guarani. “Apesar de saber que tenho sangue indígena, não sabia minha etnia, e isso me deixava triste, pois muitos me perguntavam ‘você é indígena?’. Eu respondia que sim e, quando perguntavam, ‘de qual etnia?’, não sabia responder e ficava uma lacuna dentro de mim, que pedia para ser preenchida. Quando fiz o meu trabalho de TCC, consegui compreender meu passado, minha história. Foi uma sensação de vitória, de pertencimento, é como se eu voltasse para casa depois de anos longe. Descobri o meu lugar. Hoje sou a Gislaine, sou Guarani, sou mãe e sou professora”, disse em entrevista ao jornal O PROGRESSO.

Em janeiro deste ano, Gislaine concluiu o curso de Letras na unidade da UEMS (Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul) em Jardim (MS), onde mora. O trabalho de conclusão de curso foi um resgate da sua história e da sua identidade. Foi através de um dos mais conhecidos poemas de Emmanuel que ela refletiu sobre a sua trajetória de vida. “Durante as aulas no terceiro ano da faculdade, minha professora orientadora trouxe em sala o poema ‘Genocíndio’ para discussões. Ali fomos compreendendo os versos do poema, as lutas, a visão do autor e isso foi o gatilho para que eu refletisse sobre minha história e pensar. ‘Eu sei o que é isso, pois eu vivi isso’, explicou Ajala.

Gislaine nasceu na cidade de Caracol (MS), onde viveu até os quatro anos de idade. “Meu pai indígena levou eu e meus irmãos para morar com ele no distrito do Boqueirão [Jardim]. Ficamos ali por um tempo, mas estávamos em uma situação muito precária, pois meu pai era peão de fazenda, mas não estava trabalhando no momento e não havia aquilo que é considerado necessidades básicas para vivermos. Faltava comida, roupas, remédios, estávamos fora da escola (eu e minha irmã de 7 anos). Meu irmão de 2 anos estava com desnutrição em fase crítica e precisava urgentemente de um médico”, conta. O Conselho Tutelar foi acionado e o pai de Ajala pediu aos conselheiros que os filhos fossem adotados, por não ter condições de cuidar das crianças e precisar trabalhar. “O próprio conselheiro e sua família nos adotaram e fomos morar com eles. E tivemos uma família, cuidados com saúde, educação, carinho e amor”, afirma a indígena.

“Eu identifiquei minha história ali, a fome, o descaso, o abandono e, nesse momento, eu decidi que aquele poema seria minha base de estudo e pesquisa, pois assim eu poderia compreender não só a minha realidade, mas a de outras pessoas que passaram o que eu passei”, diz sobre Genocíndio ter despertado o olhar sobre sua origem. “Sempre soube que tinha uma família paterna indígena, mas que eu não conhecia e não sabia nada a respeito, pois tive pouquíssimo contato durante minha vida. Meus pais [adotivos] sempre me incentivaram a buscar as minhas origens e descobrir minha história”, complementa. Ela falou que “foi um trabalho difícil, porque não se tratava apenas de uma pesquisa para a graduação. Era muito pessoal. Além das teorias, teria que ir atrás de pessoas que até o momento não conhecia, o medo da rejeição. Tudo era um obstáculo. Mas, depois que terminei, depois da defesa, o sentimento é de conquistas, vitória. Chorei muito depois que passou todo o nervosismo. Eu liguei para meu pai adotivo e falei para ele: - ‘eu consegui’.

A professora indígena sempre estudou em escola pública e disse que os pais sempre a incentivaram. “Sempre admirei o ‘ser professora’. Fiz o Enem, consegui uma vaga na chamada geral e, finalmente, realizei meu sonho de ingressar na universidade”, relata. “A universidade é uma das portas para mudar a realidade indígena, saber que podemos estar cada vez mais em números nas salas de aulas, ser professores mestres ou doutores é uma forma de buscar o lugar de fala, transformar a educação, quebrar padrões de que o indígena é selvagem. A educação, as escolas, as universidades têm o poder de transformar vidas. Eu acredito no poder da educação e dos professores”, defende. Gislaine Gamarra Félix tem como objetivos continuar os estudos e pesquisas, descobrir ainda mais sobre a família e suas origens. “E o mais importante: ser uma professora que inspira os estudantes, sejam eles indígena ou não, e formar cidadãos que realizem seus sonhos”, planeja.

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Contato com o poeta

Gislaine disse à reportagem que falou com Emmanuel Marinho pelas redes sociais. “Conversamos um pouco sobre toda a repercussão e a importância de registrar esse momento que seria inspirador para outras pessoas que estão na mesma situação que eu estava”, relata. O poeta falou ao O PROGRESSO que ficou muito emocionado com a história da professora indígena. “Uma história tão bonita que envolve a poesia, a educação e a arte. Isso veio num dia bom, que eu estava muito triste com tudo que está se passando no nosso país. E isso me deu vida, muita esperança e alegria”, disse.

Emmanuel considera Genocíndio um poema emblemático para a questão indígena. “Inclusive, eu já recebi várias traduções de Genocíndio em línguas indígenas. Índios de vários lugares do país que traduziram e mandaram para mim. Enfim, é uma gratidão para a vida. A arte é uma questão humanitária. Eu sempre percebi que a arte é que salva, é capaz de mudanças, em todos os sentidos. Não só a arte engajada, mas a arte por si só ela é transformadora, do mundo, das pessoas. Contribuir com uma pessoa descobrir sua identidade através da poesia, é um reconhecimento do trabalho. Não só do trabalho poético, mas humano, cidadão, que eu sempre busquei no meu trabalho, nas escolas. Eu sempre estive ligado à educação. Há mais de 40 anos que eu dedico grande parte da minha vida. Ultimamente mais do que nunca, porque só a arte, a educação e o amor podem salvar esse mundo”, falou o poeta.