Vidas negras importam

“Covid-19 é mais letal entre negros e subnotificações mascaram o racismo”

22 JUN 2020 • POR Valéria Araújo • 13h09

Dados do Ministério da Saúde mostram que a Covid-19 é mais letal entre os negros. Há uma morte para cada três brasileiros negros hospitalizados com coronavirus, enquanto entre brancos a proporção é de uma morte a cada 4,4 internações. Até maio, mais da metade dos negros que se internaram em hospitais no Brasil para tratar casos de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave), com confirmação de covid-19, morreu.

Esta é a constatação de uma nota técnica assinada por 14 pesquisadores do NOIS (Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde) da Puc (Pontifícia Universidade Católica) do Rio de Janeiro, em que foram analisados 29.933 "casos encerrados" de covid-19 (ou seja, com óbito ou recuperação). Dos 8.963 pacientes negros internados, 54,8% morreram nos hospitais. Entre os 9.988 brancos, a taxa de letalidade foi de 37,9%.

Em Dourados, a coordenadora do Núcleo de Estudos Afrobrasileiros (Neab) da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Cláudia Cristina Ferreira Carvalho, explica que a diferença de letalidade entre brancos e negros pode ser ainda maior devido a subnotificação.

Levando em conta que no Brasil, os dados do Ministério da Saúde sequer eram separados por cor no início da pandemia e que os boletins só passaram a incluiros números quase um mês e meio depois da confirmação do primeiro caso de Covid-19,  graças à pressão da Coalizão Negra por Direitos, a coordenadora acredita que a vulnerabilidade social é o principal motivo da letalidade maior entre negros.

“A Covid 19 é doença  que expõe, de maneira  radical, a desigualdade na sociedade brasileira e o fato da população negra, assim como a indígena, ser mais vulnerável, é justamente porque ela quem está muito mais concentrada na periferia das cidades onde os acessos aos serviços de proteção sanitárias, conforme a recomendação da Organização Mundial da Saúde, não chegam. Boa parte dessa população negra se vê ainda obrigada a ir para o seu trabalho precarizado, sobretudo as empregadas domésticas,  as diaristas, que estão mais vulneráveis tendo em vista que as patroas brancas dificilmente as dispensam do trabalho. Basta a gente lembrar o caso recente, em que um garoto de cinco anos morreu ao cair do 9º andar de um prédio, depois que a mãe, negra e diarista, teve que deixar o filho com a patroa para sair para o passeio do cachorro da madame”, destaca.

 As condições sanitárias dos negros também são as mais precarizadas. “Geralmente são residências com o número maior de pessoas, onde não se  tem condição de fazer isolamento. Ainda há uma questão que agrava  que são as subnotificações ou as não notificações da Covid -19, que é uma forma, inclusive, de mascarar o racismo estrutural no qual nós vivemos. Se você pegar como referência as últimas manifestações que aconteceram Estados Unidos e as matérias que foram veiculadas no Brasil toda a plataforma dos comentários que falavam sobre o racismo era formada por profissionais brancos.  Hoje a gente vive numa sociedade em que a branquitude  é um privilégio enquanto que em relação a negritude, a sociedade ainda se assenta no fosso  muito profundo das desigualdades raciais”, explica.

A pesquisadora ressalta ainda outro motivador das mortes: o racismo estrutural, termo usado para reforçar o fato de que há sociedades estruturadas com base na discriminação que privilegia algumas raças em detrimento das outras. No Brasil, nos outros países americanos e nos europeus, essa distinção favorece os brancos e desfavorece negros e indígenas.Segundo Claudia Carvalho, ele está presente em todas as instituições. “Um exemplo é que acontece em relação a violência. De ambos os lados o negro é o que mais morre. No caso de violência policial as maiores vítimas são os jovens negros e do outro lado, os policias que mais morrem também são os negros devido a precariedade financeira que o impõe a fazer serviços extras”. 

Para Claudia Carvalho é através da educação que se pode vencer a barreira do racismo enraizado na sociedade. Ela cita, por exemplo as políticas de cotas raciais em que pessoas que não têm o fenótipo da raça, principalmente nos cursos de maior poder aquisitivo como os cursos de medicina, direito e engenharia; fator que contribui para que a desigualdade se perpetue. “As políticas de cotas nas universidades ainda é um desafio, em que boa parcela da população é contra. O reflexo pode ser observado na própria universidade, onde uma minoria dos professores e administradores são negros”, destaca.

O tratamento é desigual. “Não precisa ir longe. Em Dourados mesmo, muitos jovens são abordados apenas por estar em batalhas de rap em que a música é inofensiva, enquanto jovens de bairros elitizados e que fazem o uso de drogas não são”, exemplifica observando que o caminho é a educação e as políticas públicas com olhar voltado a todas as questões que envolvem as desigualdades sociais.

 

Disparidades

Um estudo liderado por pesquisadores da PUC-Rio e divulgado no último dia 27 de maio evidencia ainda mais essas disparidades. Em termos de óbitos por Covid-19, pessoas sem escolaridade têm taxas três vezes maiores (71,3%) em relação àqueles com nível superior (22,5%). Combinando raça e índice de escolaridade, o cenário fica ainda mais desigual: pretos e partos sem escolaridade morrem quatro vezes mais pelo novo coronavírus do que brancos com nível superior (80,35% contra 19,65%). Considerando a mesma faixa de escolaridade, pretos e pardos apresentam proporção de óbitos 37% maior, em média, do que brancos.