Estupro

“Estupro é devastador e pode levar ao suicídio”, diz pediatra

Em entrevista ao O PROGRESSO ele faz uma análise sobre qual o papel da Saúde Pública nesses casos, admite a existência de "complôs" nas próprias famílias para esconder casos

26 JAN 2020 • POR Valéria Araújo • 07h00
Em entrevista ao O PROGRESSO, o médico Eduardo Marcondes faz uma análise sobre qual o papel da Saúde Pública - Divulgação

“Se para um adulto a violência sexual é traumática, em uma criança é devastadora e leva muitas vezes ao suicídio na adolescência ou mesmo ao homicídio”. A frase é do médico pediatra Eduardo Marcondes. Em entrevista ao O PROGRESSO ele faz uma análise sobre qual o papel da Saúde Pública nesses casos, admite a existência de "complôs" nas próprias famílias para esconder casos que tenham como algozes seus membros, detalha os traumas que a violência sexual traz para a criança e conclama os profissionais envolvidos com a população infanto-juvenil a uma soma de esforços para adotar medidas clínicas e legais eficazes de prevenção e atendimento às vítimas de violência.  Confira a entrevista.

Quais os traumas mais comuns na criança vítima de estupro ou outro tipo de violência e como o pediatra atua nesses casos?

Se para um adulto a violência sexual é traumática, em uma criança é devastadora e leva muitas vezes ao suicídio na adolescência ou mesmo ao homicídio. Nem sempre o sofrimento da criança, do adolescente ou da família se encerra com a denúncia e com a interrupção da violência.

Por se envolver frequentemente com a criança em situação de violência, é missão do pediatra ações de identificação, enfrentamento e prevenção desse problema, demandando uma mudança de olhar das questões meramente clínicas para as sociais. É importante, nesse processo, questionar ativamente a criança e os responsáveis a respeito de novos episódios de violência; realizar sempre exame minucioso em busca de evidências físicas e estar atento para alterações comportamentais e emocionais compatíveis com abuso.

Aliado ao nosso trabalho, é fundamental o papel da família como co-atores nesse processo de detecção e cura da criança violentada. É importante que o pediatra conheça a legislação, os diversos órgãos existentes e as funções de cada um, suas possibilidades e dificuldades de atuação. O estupro é uma barbárie e deve ser combatido e punido, independente da faixa etária de quem é vítima. É a desumanização do ser humano.

Qual o seu sentimento pessoal quando atende uma criança vítima de violência?

No meu cotidiano profissional o que mais me causa repulsa é quando recebo para atendimento no consultório uma criança vítima de violência. A violência é, antes de tudo, uma violação dos direitos humanos fundamentais e manifesta-se sob diversas formas, nos mais diferentes espaços e em todas as classes sociais, afetando a saúde e a qualidade de vida das pessoas.

Os maus-tratos, abuso ou violência doméstica, que se configuram como campo de atuação dos pediatras, são mais visíveis nas camadas populares empobrecidas que, utilizando os serviços públicos de saúde como ambulatórios e serviços de emergência, de assistência social e outros, conferem maior visibilidade a esses eventos. Nas classes economicamente favorecidas, o sigilo que envolve as agressões é garantido em consultas particulares, seja com médicos, psicólogos e outros profissionais em serviços privados.

Pode-se afirmar que há uma espécie de conivência de familiares com casos de violência contra as crianças?

Creio que sim. Os maus-tratos sofridos na infância e adolescência, fases da vida de maior vulnerabilidade, por serem praticados, em sua maioria, no âmbito intrafamiliar, são encobertos por um complô de silêncio, justificado, muitas vezes, pelas alegadas inviolabilidade do lar e não invasão da sua privacidade.

Esses argumentos dificultam a atuação preventiva e o adequado encaminhamento das vítimas, podendo se perpetuar por meses e anos. Cabe ao pediatra, médico encarregado pelo acompanhamento do crescimento e desenvolvimento da criança e do adolescente, incorporar em sua anamnese, exame físico e, fundamentalmente, na escuta empática da família e do seu paciente – crianças e adolescentes, elementos que possam subsidiá-lo para afastar ou suspeitar e/ou confirmar um caso de violência.

O que o senhor acha da legislação brasileira no que se refere aos direitos da criança?

No Brasil, crianças e adolescentes são protegidos por várias normativas jurídicas e institucionais que garantem, ao menos na letra da lei, seus direitos humanos fundamentais, sendo o principal o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). É também signatário de tratados internacionais que tratam do tema.

A existência do arcabouço jurídico-institucional não exclui outros pressupostos que, a serem respeitados, levam a uma sociedade mais solidária e, em consequência, menos violenta, a saber: recursos no orçamento público para as políticas voltadas à infância e adolescência; garantia do pleno funcionamento dos conselhos de direitos e tutelares e criação destes onde eles ainda não existirem; ampliação do acesso à educação infantil de qualidade; melhora da qualidade do ensino fundamental; ampliação e melhora do atendimento pré-natal; assegurar a ampliação da licença-maternidade para 6 meses a todas as mulheres do país; respeito às diversidades e a todas as pessoas em quaisquer circunstâncias.

Pode-se afirmar que a violência contra a criança é uma questão de saúde pública?

A violência não é, em si, uma questão de saúde pública e nem um problema médico típico. Mas ela afeta fortemente a saúde porque provoca morte, lesões e traumas físicos e um sem número de agravos mentais e emocionais, diminui a qualidade de vida das pessoas e das coletividades, exige uma readequação da organização tradicional dos serviços de saúde, coloca novos problemas para o atendimento médico preventivo ou curativo. Evidencia a necessidade de uma atuação muito mais específica, interdisciplinar, multiprofissional, interceptora e engajada do setor, visando às necessidades desses pequenos cidadãos.

Como a pediatria classifica os maus tratos contra a criança e o adolescente?

Os maus-tratos são divididos nos seguintes tipos: maus-tratos físicos (uso da força física de forma intencional, não acidental, praticada por pais, responsáveis, pessoas da família ou conhecidas da vítima, com o fim de machucar, ferir ou destruir, podendo deixar ou não marcas evidentes), maus-tratos psicológicos (são todas as formas de desrespeito, discriminação, rejeição, depreciação, cobranças ou punição exageradas, assim como a utilização da criança ou do adolescente com o objetivo de atender às necessidades dos adultos) e negligência ( é o ato de omissão do responsável pela criança ou adolescente em prover as necessidades básicas para o seu crescimento e desenvolvimento.

O que o senhor sugere para que sejam reduzidos os índices de violência contra a criança?

Para se promover a redução do número de ocorrências de maus-tratos contra a população infanto-juvenil, iniciativas de sensibilização e capacitação dos profissionais, especialmente os pediatras, são propostas que visam a subsidiá-los para o diagnóstico precoce, o atendimento e encaminhamento adequados. Os profissionais envolvidos com a população infanto-juvenil poderão adotar medidas clínicas e legais eficazes de prevenção e atendimento. Tanto nos setores governamentais, como Saúde, Educação, Assistência Social, Justiça e outros, como os parlamentares das três esferas, os operadores dos direitos (conselhos de direitos e tutelares), a mídia, o terceiro setor e a sociedade como um todo, representada pelas famílias e comunidades, estarão aptos a participar no sentido da prevenção e adequado encaminhamento dos casos, formando uma grande articulação interssetorial e interdisciplinar para evitar que crianças sejam levadas para atendimento, nos consultórios, por essa chaga que é a violência infantil.