*Janice Linhares – 18.06.2021
“Tão cedo para me deparar com a morte hoje”, pensei, ao ver o Gatinho esmagado no asfalto. Cedo da manhã meus olhos, recém-abertos para o mundo para mais um dia de labuta, depararam-se com aquela cena. Os carros correndo, a terra girando e o Gato estirado no meio da avenida.
“- Tadinho, Mãe!”, ouvi as suaves vozes que me acompanhavam. “- Que dó!”, eu respondi. Puxei a oração que religiosamente faço com meus filhos ao amanhecer, na trajetória para a escola. “Ave-Maria, cheia de Graça...”, mas a visão do Gato invadiu cada pedacinho da reza. “O Senhor é convosco”, Gato, “Bendita sois vós entre as mulheres”, Gato, “ E bendito é o fruto de vosso ventre”, Gato, “Jesus”...
Finda a ladainha, parei diante do liceu; despedidas, “- Deus os abençoe, boa aula, até mais tarde!” Novamente o Gato saltou no colo dos meus pensamentos. Brincou alegremente com um novelo de problemas embolados do dia anterior que ficaram para hoje e repentinamente o encontrei no caminho de volta, ainda mais jungido ao frio da estrada.
Observando sua morte, senti o seu viver. Senti o último pulsar de seu coração ao perceber que a travessia não daria certo, ao intuir que jamais chegaria ao outro lado, à outra margem. Senti suas sete vidas passando como um filme em minha própria cabeça. Seu nascimento, o leite fresco e quente escorrendo em sua garganta, seus dias de aprendizado, suas aventuras em cima dos telhados, o vento fresco a bater-lhe no peito, a velocidade de suas patas, as pragas que lhe rogaram, as amizades desinteressadas, a bondade das esquinas, suas noites de solidão...
Uma compaixão tamanha invadiu-me, queria tirar o seu corpo daquele local, depositá-lo na terra, essa sim merecedora de receber sua história, não aquele rio escuro e inerte que abraçava seu corpo inanimado com indiferença. Essa mesma indiferença de todos os veículos que o desfiguravam cada vez mais com suas rodas.
Busquei rapidamente dentro do meu automóvel algo que pudesse servir de mortalha. Nada. Justo eu, que sempre tenho milhares de quinquilharias no carro, não carregava um objeto sequer que fosse apropriado a dar ao Gato um sepultamento honrado de quem também é filho de Deus. Senti-me impotente, incapaz de agasalhar com dignidade a finitude daquela vida.
Enquanto pensava, uma caminhonete dividiu o Gato em dois, partindo igualmente minhas esperanças de tirá-lo dali.
Senti-me atropelada como o Gato, esmigalhada no asfalto, dividida entre minha piedade e o prosseguir de minha rotina. Mesmo comovida, respirei fundo. O novelo de problemas de ontem rolou à minha frente, como um lembrete de que a Vida segue, não importa quantas vezes você morra um pouquinho durante o dia, no escorrer das horas.
Mesmo partida, dei partida no carro e parti. “Era só um gato esmagado no asfalto...”