“A repatriação do acervo, que reúne mais de 700 obras, não se trata apenas de devolver essas peças às suas origens, mas de ressaltar a contribuição de cerca de 100 artistas negros para a cultura afrodiaspórica no Brasil”, conta a diretora do Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab), Jamile Coelho.
As obras, de diversos artistas da Bahia, Pernambuco e Ceará, foram repatriadas pelo Muncab, em Salvador. Elas englobam pinturas, esculturas, adornos e paramentas, criadas a partir de técnicas variadas.
Entre as peças, estão obras de ferro assinadas por José Adário, renomado ferreiro dos Orixás da Bahia; panôs geométricos da designer Goya Lopes; pinturas do artista plástico Babalú (Sinval Nonato Cunha, 1945-2008), irmão de J. Cunha, que retratam a paisagem do Pelourinho; além de esculturas em madeira de Celestino Gama da Silva, o Louco Filho, e de seu pai, Boaventura da Silva Filho (1929-1992), o Louco.
“Historicamente, a cultura brasileira tem sido marcada por uma estética eurocêntrica, enquanto a arte negra é frequentemente associada ao popular. Com o retorno dessas mais de 700 obras ao Brasil, abre-se também a oportunidade de repensar e debater a produção artística do século XX sob a nova perspectiva de nossas raízes”, pontua a diretora do espaço.
As peças datam de um período que vai dos anos 1960 até o início dos anos 2000. As obras foram doadas a partir de 2025 pela historiadora de arte Marion Jackson e pela artista plástica Bárbara Cervenka, duas colecionadoras estadunidenses que adquiriram legalmente as obras desde 1992, em visitas periódicas à Bahia. A partir de 2019, ambas visitaram diversas instituições até escolherem o Muncab como o destino para a devolução do acervo que montaram.
De acordo com o Museu, o processo de repatriação encontra-se na fase de inventário das peças, com detalhes completos ainda a serem descobertos. “Durante a análise conduzida pelo grupo de trabalho do Muncab, ficou clara a importância de trazer esse acervo de volta para a Bahia, e para uma instituição museu racializada, reforçando o valor histórico e cultural de cada peça”, explica Jamile.
Para ela, a devolução é significativa não apenas pelo volume impressionante, que a torna a maior doação privada estrangeira da história da cultura afrodiaspórica no Brasil. A importância também reside na diversidade de abordagens, temáticas e suportes presentes nesse acervo.
“Isso nos convida a refletir sobre a contribuição desses artistas na construção da identidade brasileira, tanto em uma perspectiva histórica quanto na projeção de um futuro em que a valorização da arte negra seja central”, avalia.
Futuras exposições
O Muncab prevê que o acervo circule pelo país e que a primeira exposição seja realizada em Salvador, antes de percorrer outras regiões do Brasil. O museu já adota uma política de empréstimo de obras para diversas instituições museais brasileiras, e essa prática continuará com a chegada do novo acervo, ampliando as oportunidades de itinerância tanto no mercado nacional quanto internacional.
Segundo o Museu, o Ministério da Cultura tem sido um parceiro essencial desde a concepção do Muncab e continua sendo o principal apoiador da instituição no Brasil.
“Embora o museu não seja federalizado, sua existência é viabilizada graças ao apoio do MinC. No contexto da repatriação, temos avançado no diálogo para garantir que esse processo seja concretizado, respeitando as prerrogativas legais e institucionais do nosso país”, destaca a diretora.
Foto: Cristian Carvalho/Muncab
Sobre o Muncab
O Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (Muncab) é dedicado à preservação, documentação, difusão e valorização das culturas de matrizes africanas, que influenciam o Brasil e as Américas. O acervo permanente é composto por mais de 400 obras de arte raras e históricas, modernas e contemporâneas de artistas negros. São pinturas, esculturas, gravuras, fotografias, joias, arte sacra e documentos que testemunham a estética africana nas artes visuais.
Além de reunir documentação histórico-cultural afro-brasileira, o papel do Muncab é promover ações e iniciativas de intercâmbio com os países africanos, sobretudo aqueles de onde vieram os maiores contingentes de negros escravizados, como Angola, Moçambique e Guiné.
Outras repatriações
A luta pela reparação e a valorização do legado cultural indígena e negra têm sensibilizado museus e colecionadores ao redor do mundo, refletindo sobre a importância da devolução de obras aos seus países de origem. Exemplo disso são os 585 artefatos indígenas que estavam no Museu de História Natural de Lille, na França, e integrarão o acervo do Museu do Índio, vinculado à Funai, no Rio de Janeiro. E o Manto Tupinambá, com mais de 350 anos, doado pelo Museu Nacional da Dinamarca para o Museu Nacional do Rio de Janeiro.