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Nossos Córregos: Perpétua Tragédia Ambiental

09 Mar 2021 - 17h06Por Mário Cezar Tompes da Silva*
Prof. Mário Cezar Tompes da Silva - Prof. Mário Cezar Tompes da Silva -

Londres em meados do século XIX sobressaía-se como a maior cidade do mundo. Em 1850 apresentava uma população de mais de 2 milhões de habitantes. Seguramente era também um dos lugares mais fedidos e insalubres para se morar. Naquele período, uma boa parcela do esgoto dos mais de 2 milhões de londrinos era despejado in natura no rio Tâmisa. Em bem pouco tempo o rio foi transmutado em uma enorme latrina que exalava vapores pestilentos. O problema, no entanto, atingiu um grau abominável no verão de 1858 quando as altas temperaturas e o tempo seco baixaram o nível do Tâmisa, depositando a matéria fecal nas margens do rio. O odor disseminou-se pela cidade. O episódio tornou-se conhecido como o grande fedor (the great stink).

Na época, o fenômeno chegou a causar um revés aos mais poderosos monarcas do mundo. A rainha Vitória e o príncipe Albert que tinham decidido realizar um cruzeiro de verão pelo Tâmisa não resistiram mais do que alguns minutos após serem golpeados pelas malcheirosas emanações do rio. Bem depressa a ideia do cruzeiro real evaporou-se entre os miasmas ribeirinhos. Até mesmo a realização das sessões do venerável parlamento britânico tiveram que ser suspensas e nem a iniciativa de fechar e borrifar as cortinas de suas janelas com hidroclorito de cálcio foram suficientes para garantir a continuidade dos trabalhos em seu recinto. 

Infelizmente a contaminação das águas da cidade produziu desastres bem mais graves do que o grande fedor. Entre 1831 e 1866, Londres foi impactada por sucessivos surtos de cólera que subtraio a vida de mais de 37 mil de seus residentes. 

A solução definitiva para o problema dos esgotos de Londres só se concretizou com a implantação do projeto do engenheiro Joseph Bazalgette. Ele concebeu e executou uma extensa rede de esgotos subterrâneos, estações elevatórias e diques visando captar e transportar as águas servidas e despejá-las distante da cidade. A obra gigantesca foi concluída em 1875. Inicialmente o esgoto era despejado in natura no rio, a jusante da cidade. Porém, em 1880 já foi adotado o tratamento dos efluentes. Desde então os londrinos nunca mais foram vítimas de odores pestíferos ou surtos de doenças decorrente da contaminação das águas de seus rios.

Desde então o tratamento e a destinação adequada dos esgotos tornou-se uma tecnologia comum e disseminada na maior parte das cidades do mundo. Hoje, todos sabemos que sua utilização salva vidas e preserva as águas urbanas. Ainda assim, após 141 anos de existência, desde as ações pioneiras de Joseph Bazalgette em Londres, eis que, em Dourados, ainda nos deparamos com a manchete “Córrego vira Esgoto a Céu Aberto em Dourados” (Douradosagora 01/03/2021). Em síntese, a matéria denuncia a existência de uma crosta de fezes flutuando nas águas do córrego Água Boa. Segundo moradores da Vila Cachoeirinha, bairro que margeia o curso d’água, da superfície escura do córrego emana um odor irrespirável.

Segundo afirmação dos moradores, o esgoto lançado no córrego seria proveniente da central de tratamento da Sanesul. Consultada, a empresa declarou que as fezes são provenientes de ligações clandestinas de esgoto na rede de drenagem pluvial. Em períodos de chuva os detritos são carreados para os córregos. E, nesse caso, a responsabilidade pela solução desse imbróglio malcheiroso é da Prefeitura. Toda essa embrulhada torna-se mais inquietante quando lembramos que o córrego Água Boa é um afluente do rio Dourados, o mesmo que fornece metade da água consumida pelos douradenses.

Esse lamentável episódio está deslocado no tempo, ele reencena um drama do século XIX em pleno século XXI. Será por insuficiência de estruturas da gestão pública? No presente, funciona no município de Dourados uma pletora de órgãos públicos para tratar especificamente do meio ambiente: IMAM, IMASUL, IBAMA, Guarda Municipal Ambiental, Polícia Militar Ambiental e SANESUL. Se imaginarmos uma média de duas dezenas de funcionários por cada um destes órgãos, teremos teoricamente uma centena de pessoas destinada exclusivamente a administrar, fiscalizar e mitigar os problemas ambientais do município. No entanto, nos deparamos com a notícia de ligações clandestinas de esgoto funcionando impunemente e de fezes sendo transportadas por nossos córregos. 

Embora seja desolador testemunhar a baixa eficácia das instituições ambientais, devemos reconhecer que uma parcela da responsabilidade por essa tragédia ambiental é compartilhada pelos cidadãos que, de forma furtiva, lançam seus esgotos na rede de água pluvial. O problema, aliás, é mais amplo, sabe-se que além do esgoto doméstico, encaminham-se regularmente para os nossos córregos efluentes industriais, dos serviços de lava jato, lixo comum e animais mortos. E isso vem ocorrendo há muito tempo. O que imaginar de uma comunidade que permanece demasiado tempo indiferente ao lançamento de fezes e outras imundícies na água que ela própria consome? Há um século e meio atrás boa parcela das sociedades renunciou à indiferença e solucionou adequadamente o problema. Por aqui, na segunda década do século XXI, senão a indiferença, mas certamente o pouco empenho é ainda a postura que prevalece. 

 

*Professor de Planejamento Urbano.
E-mail: [email protected]

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